COLUNISTA

É a medula que me tolera!

Por Alberto Consolaro | 07/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min
Professor Titular da USP e Colunista de Ciências do JC

O porco foi mudado geneticamente para ser aceito pelo sistema imunológico do paciente
O porco foi mudado geneticamente para ser aceito pelo sistema imunológico do paciente

Com as notícias de transplante de órgão de porco bem-sucedido em humano e com o frequente relato de transplante de medula óssea quase como rotina, as explicações sobre como isto é possível são intrigantes.

Sabemos que o organismo aceita ou rejeita os órgãos de acordo com a semelhança bioquímica entre o doador e receptor, o que se chama de compatibilidade ou histocompatibilidade. É difícil achar alguém parecido para se fazer um transplante e, quando ocorre, é muito generoso o gesto de doar.

Quando se recebe o órgão transplantado, as células imunológicas (também chamadas de inflamatórias, de defesa ou leucócitos), reconhecem se ele é igual ou diferente nas moléculas das células daquele corpo. Se for igual ou parecido, aceitam e fica tudo certo. Se for diferente, estas células providenciam a sua eliminação ou rejeição.

ERA FICÇÃO

No caso do transplante de rim do porco, os cientistas mudaram os genes que comandam a formação do órgão suíno na gestação. Assim, o rim ficou muito parecido bioquimicamente com o órgão humano, ou seja, ficou compatível. Nas últimas décadas do século passado, eu explicava isto em detalhes para os alunos da graduação e da pós, quase como uma ficção científica e eles ficavam fascinados com esta possibilidade. Hoje é realidade.

Este raciocínio pode ser transferido para os demais órgãos humanos, mas para a medula óssea não dá pelo que ela representa na espécie humana. Todas as células de defesa, ou imunológicas, são produzidas na medula óssea, além das hemácias e plaquetas. É o tecido humano que mais prolifera em todos os dias da vida, e se ela não funcionar adequadamente, teremos severos problemas de saúde.

IMUNIDADE?

Imunidade é uma situação em que o corpo se encontra protegido de agressores biológicos, como as bactérias, vírus, fungos e parasitas. Isto acontece por dois mecanismos: a inflamação e o sistema imunológico.

Na inflamação as repostas tendem a ser inespecíficas, igual para todos os agressores. As células e substâncias de defesa já vieram preparadas e prontas para agir deste o nascimento, o que é chamada de imunidade inata. Na resposta imunológica adaptativa, o organismo aprende, a cada dia, como combater cada agente que tenta entrar ou entra em nós, desenvolvendo respostas específicas com células e substâncias preparadas para esta situação.

Se você toma água, se alimenta bem, tem hábitos saudáveis, evita contaminações e mantem sua carteira de vacinação em dia, pode dizer que tem uma saúde muito boa e protegida, uma situação de imunidade. Para se tirar esta imunidade normal, você realmente deve estar negligenciando muito estas condições e por um bom período.

HUMILDADE

Nosso corpo não aceita ou rejeita ninguém, quem faz isto, é a medula óssea e seu manancial de células. Foi a medula óssea que aceitou o meu corpo, ela tolera os meus tecidos e células, convivendo com eles de forma harmoniosa. Se algum de meus tecidos resolver fazer algo fora do combinado, terei uma doença autoimune, pois ela perderá a tolerância combinada.

Sim é a medula óssea que tem a tolerância imunológica com o corpo e isto é incrível. Às vezes, bancamos o intolerante com pessoas, animais e outras coisas. Esta propriedade de tolerância conosco da medula óssea, nos coloca na devida posição, inclusive de que somos mortais e não donos da razão. Parece que a alma mora na medula óssea!

Voltando aos transplantes, o doador e o hospedeiro devem ser compatíveis para uma nova medula óssea ser harmoniosa com o novo corpo. Mas tem caso, que a medula óssea doada não aceita o corpo para onde foi transplantada, em uma reação conhecida como enxerto (ou transplante) versus hospedeiro. Quanto mais cedo puder, se deve achar outra medula para colocar no lugar daquela que não aceitou, pois o risco da vida está por um triz!

REFLEXÃO FINAL

Será que temos o direito de sermos intolerantes, mediante o exemplo que a medula óssea dá de nos aceitar como somos, inclusive do ponto de vista molecular?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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