OPINIÃO

Odeio a palavra “senhor”

Por Roberto Magalhães | 26/12/2023 | Tempo de leitura: 2 min

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais

Existem palavras que só nomeiam. Não servem senão para batizar. Não vão além disso. Nada acrescentam, não cheiram e não fedem. "Casa", por exemplo, é moradia. Nem verde nem branca nem rica nem pobre, mas, sendo miserável, vira barraco. Já a palavra "esparadrapo" é diferente. Tem som de cara quebrada pronta para esparadrapar. Outras são gêmeas na cara e no focinho, palavrinhas danadas de fazer a gente passar vergonha. "Tráfego" vira "tráfico" e pode virar cadeia. "Cavalheiro" é um homem gentil, mas "cavaleiro" não precisa ser. Pode ser até um cavalo, desde que em outro suba. Algumas palavras são nojentas. "Furúnculo" lembra ferida furada, vazando pus, que nojo!

E, por falar nisso, "nauseabunda" lembra o quê? Não sei não, mas acho que misturar náusea com bunda, boa coisa não se pode esperar. Aliás, o sufixo "bunda", fazendo jus a sua meritória fama, entra na composição de muitas palavras. "Moribunda" seria amor e bunda? "Vagabunda", uma bunda vaga? Achei essas hipóteses de muito mau gosto. Fui pesquisar a etimologia. "Vagabundo" vem do latim "vagabundus". Olha só a composição: "Vagare" "bundus". A palavra latina "vagare" significa vaguear, andar sem destino. E "bundus" significa "cheio de". Isso explica a palavra "abundância", que é quando uma pessoa está cheia de coisas, mas não de bunda necessariamente. Lembrei-me da Raimunda.

Agora, nada pode ser mais ofensivo do que a palavra "canalha". Essa humilha e estraçalha, deixa o coitado no chão. Nelson Rodrigues, eterno descrente da natureza humana, indagava "se o canalha era uma dimensão obrigatória de cada um." E, subindo o tom, aventou a hipótese de existirem até mesmo santos canalhas. Credo!

Alguns têm uma palavra, uma cor, uma música preferida. Pensei, pensei e me vi de bolsos vazios. Nada tenho de grata memória. Mas de infeliz memória tenho. É a palavra "senhor" que, em duas vezes, me deixou acabrunhado. Explico-me. Eu ainda era jovem, quando, esperando para ser atendido numa loja, ouvi a proprietária dizer à funcionária. "Fulana, atende àquele senhor!". Imediatamente, virei-me para trás para ver quem era ele. Não havia ninguém, o senhor era eu. Trauma, claro! Naquele dia, percebi que já não era mais o jovem que eu pensava ser. Desde então, perdi o breque e não parei mais de despencar nessa ladeira vertiginosa e fatal.

Em outra oportunidade, odiei de morte essa mesma palavra "senhor". Viajava em metrô lotado, equilibrando-me no balaústre horizontal. Sentado à minha frente, um velhinho triste e cabisbaixo me cortou o coração. Que maldade faz o tempo depauperando uma pessoa a tal ponto, pensei.

Subitamente, o velhinho levantou a cabeça, não só a cabeça, mas de todo se levantou e, me olhando com padecimento, me disse: Meu "senhor", aceita o meu lugar, por favor." Sentei, mas sob protesto. Fazer o quê?

Receba as notícias mais relevantes de Bauru e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.