Nascida na roça, em Garça, a atual diretora da Divisão de Bibliotecas da Secretaria de Cultura de Bauru, Vanessa Garcia, 34 anos, transformou sua vida e, hoje, trabalha para que muitas outras possam ser modificadas. Alvo de bullying desde criança, por conta de seu modo de falar e do cabelo afro, quando veio para Bauru, ela entendeu que precisava estudar para se libertar.
Foi assim que se identificou como mulher negra, ingressou no serviço público e se livrou de um relacionamento abusivo. Sempre com um olhar voltado ao bem coletivo, trabalhou na assistência social, em capacitação para o emprego e na regularização de lotes nas comunidades de Bauru.
Formada em gestão pública e administração de empresas, foi a única da família de nove irmãos que teve acesso ao ensino superior. É, ainda, membro do Conselho Municipal da Comunidade Negra, musicista e poetisa com quatro antologias e coletâneas publicadas com outros autores, que tratam de temas como transição capilar, racismo, mulheres e maternidade.
"Sou uma mulher altruísta, com fé e que trabalha para um mundo mais digno e justo, independente de reconhecimento. Tenho muito orgulho do que me tornei", diz ela. Mãe de Micael, 13 anos, e noiva de Guilherme Conte, engenheiro do DAE, com quem se casará em dezembro, a servidora, que milita na luta antirracista, celebrará, nesta segunda-feira, o Dia da Consciência Negra. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
JC - Como foi sua infância e quanto tempo morou em Garça?
Vanessa - Meus pais eram trabalhadores da roça, em plantação de café, e eu morava com eles e mais oito irmãos em uma fazenda. A família inteira veio para Bauru depois que meu irmão, o Joel, conseguiu um emprego aqui como vigilante. Chegamos meio assustados, mas alugamos uma casa e viemos, pelas oportunidades de trabalho. Vivi até meus sete anos em Garça e tenho lembranças muito boas daquela época.
JC - O que você fez no início da sua vida em Bauru?
Vanessa - Fui trabalhar, aos 14 anos, como babá e, como sempre gostei de aprender, fui cuidar de uma criança autista. Em Bauru, no início, sofri muito bullying por ter vindo da roça. Eu falava errado, usava palavras que as pessoas não conheciam, tinha o cabelo armado e elas falavam coisas que machucavam. Isso me motivou a estudar, mas também passei a alisar o cabelo, esconder minhas raízes. Só parei aos 30 anos, quando me descobri como mulher negra, o que mudou minha vida. O ponto de partida foi quando fui cursar gestão pública, pelo Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), e, depois, administração de empresas, porque comecei a conviver mais com pessoas com cabelo cacheado. E, nessa fase de transição, estava passando por um relacionamento abusivo. Mas, quando passei a me ver como mulher negra e independente, foi libertador. Foi uma história de superação, mesmo.
JC - E como foi seu ingresso no serviço público?
Vanessa - Antes, eu dei aulas particulares de órgão. Estudei por quatro anos, recebi a doação de um órgão e comecei a dar aulas em casa. Parei quando entrei na prefeitura, em 2011, como agente social, no atendimento do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), na Sebes. Atendia mulheres vítimas de violência e aprendi muito com elas, bem como com assistentes sociais e psicólogas com quem trabalhava. Eu ainda estava nesse relacionamento abusivo e entendi que não era normal. Fui fazer terapia e consegui sair daquilo. Depois, fui trabalhar como facilitadora do Time do Emprego, dando capacitações para o ingresso no mercado de trabalho, nos residenciais de baixa renda do programa Minha Casa Minha Vida. E acabei ajudando a encaminhar moradoras vítimas de violência à assistente social, psicóloga. Em 2015, ganhei um prêmio por ter sido a facilitadora que mais aplicou o Time do Emprego em Bauru, naquele ano.
JC - E, depois, foi atuar em que área?
Vanessa - Fui convidada pela Seplan para trabalhar como chefe da seção de habitação, na regularização de comunidades como a do Ferradura Mirim, hoje Vila do Sucesso, e do Parque Jaraguá. Mais uma vez, me identifiquei com aquelas pessoas e, quando podia, ajudava em algum serviço social, como doação de cestas básicas, encaminhamento para emprego. Sempre busquei ir além. Sou muito proativa e, com isso, fui ganhando experiência, oportunidades e passei a assumir cargos de liderança. De 2019 a 2020, fui trabalhar na Sedecon, como chefe de eventos, e começamos a unir empregabilidade com ações sociais, nas periferias, com o Sedecon Móvel.
JC - Em seguida, começou a atuar nas bibliotecas municipais?
Vanessa - Sim. Fui convidada, em 2020, porque a Secretaria de Cultura precisava de um olhar social nas bibliotecas, especialmente nas quatro ramais, mais distantes do Centro. Em 2021, assumi como diretora da divisão de Bibliotecas. Criamos o projeto da Biblioteca Móvel e levamos, aos sábados, contação de histórias e livros para doação nas periferias. Criamos, também, o projeto Viajando na Literatura, em que, toda segunda-feira, recebemos um grupo da Legião Mirim. Ele acabou, inclusive, resultando na publicação de um livro.
JC - Como tem sido a experiência no Conselho Municipal da Comunidade Negra?
Vanessa - Entrei no conselho porque, na Secretaria de Cultura, comecei a me deparar com coisas que a escola não assinava sobre racismo estrutural, com escritoras negras como Carolina Maria de Jesus. Eu já estava com meu cabelo afro, mas ampliei ainda mais meu repertório. O conselho também me ajudou muito na minha construção como mulher negra. Lá, desenvolvi, por exemplo, o prêmio "Luisa Mahin", que celebra, na Semana da Consciência Negra, pessoas que combatem o preconceito. E estamos sempre discutindo casos de racismo, estudando leis. Eu me fortaleci nesse processo e, hoje, nos espaços públicos, consigo transmitir esse conhecimento a outras mulheres, para que elas também descubram que a vida delas, por mais difícil que seja, pode ser diferente.
Vanessa em ação da Biblioteca Móvel
Vanessa (ao centro, de blusa clara) com as irmãs Regina e Rosa, a mãe Juracy, as irmãs Iracema e Ivana e a sobrinha Ester
Vanessa com o filho Micael e o noivo Guilherme