OPINIÃO

Bauru, 40 graus

Por Zarcillo Barbosa | 18/11/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é jornalista e articulista do JC

Sob o sol das três horas da tarde, a campainha soa em casa, e o homem de rua, velho freguês, vai logo avisando: "Não quero comida, minha fome hoje é de água". Providencio um pet de litro com água gelada que ele distribui entre os cinco cães que o acompanham. Volto a encher o recipiente, e ele agradece.

Nem meia-hora se passou e a campainha toca novamente. O pedreiro de uma construção na vizinhança desculpa-se pelo incômodo. "O pessoal pede se possível, pro senhor ceder umas pedrinhas de gelo pra pôr no corote que a água tá quente". Tenho umas forminhas no freezer e não sou de beber uísque "on the rocks".

O próximo a acionar a campainha foi o homem da leitura do relógio da luz. Apressado, coberto da cabeça aos pés, boné e balaclava, mostrava-se preparado para enfrentar o fogo do inferno. Ofereci água, ele agradeceu e disse que tinha a sua garrafinha cheia. Esse é profissional - pensei.

Na esquina do semáforo, o senhor de meia-idade que ali faz ponto todos os dias, me oferece os dropes de sempre. "Por que não vende garrafinhas de água gelada?" Responde que não tem isopor e o supermercado só vende o cooler, a água e o gelo para quem tem dinheiro.

Como orientador de negócios, passei vergonha. Falta o tal capital inicial para sustentar o giro de estoque. Marx criticava o capital, ou "a propriedade privada dos meios de produção", por conduzir à reificação (coisificação) do mundo. O capital continua se reinventando, mas quem é pobre, sofre porque não tem gelo, porque não tem ventilador, porque o transporte público não tem ventilação, porque tem que trabalhar com sol, chuva, faça calor ou faça frio.

Também não sei se daria certo alguém financiar um Gunga Din de esquina. Vejo muita gente com garrafas térmicas. No passado seriam para guardar líquidos quentes ou gelados para os piqueniques. A preocupação com a saúde e a hidratação elevou, nos últimos anos, a demanda por uma versão voltada ao uso individual. Para lidar com o calor só mesmo levando a garrafinha de água gelada para todo lado. Eu mesmo, escrevo com uma ao alcance da mão.

O DAE se lembrou dos "sem garrafa térmica" e instalou uns pontos de hidratação lá no centro. Parei num deles quando voltava de uma consulta de rotina. O médico me receitou "muita água, o xixi tem que sair bem clarinho". Ouvi a mãe na Batista gritar para o filho - "Mauricinho, sai do sol!" Lembrei-me de mamãe que ralhava - "Menino, sai do sereno!"

O filme "Rio, 40 graus", de Nelson Pereira dos Santos (1955), foi o marco inaugural do que se chamou cinema novo brasileiro, inspirado no neorrealismo italiano. Conta a história de cinco adolescentes de uma favela carioca que querem comprar uma bola, e decidem vender amendoim nos pontos turísticos do Rio de Janeiro. O filme mostra a divisão entre a favela e o asfalto. A segregação espacial dos condomínios, e a exclusão social. A exibição do filme foi proibida em todo o território nacional, sob a justificativa de só apresentar aspectos negativos e servir aos interesses políticos dos comunistas. O chefe de Polícia do Rio, um tal coronel Menezes Cortes, ainda argumentou para reforçar a censura, que a temperatura do Rio nunca chegara aos 40 graus. O filme só foi liberado por Juscelino Kubitschek depois que assumiu a presidência da República.

Antes desta atual onda de calor, vendavais e tempestades deixaram milhões de pessoas no escuro por vários dias. Acho que não falta mais ninguém para se convencer da necessidade de proteção dos ecossistemas. O tal de efeito estufa existe mesmo, em tem consequências.

Os eventos climáticos extremos, como verões muito intensos e chuvas torrenciais, podem se tornar o "novo normal" no Brasil. Segundo os especialistas, as mudanças climáticas vão acontecer com mais frequência daqui em diante.

É preciso, urgente, discutir planos de mitigação desses fenômenos e repensar a cidade.

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