OPINIÃO

Obsessão e velhice

Por Zarcillo Barbosa | 04/11/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é jornalista

O escritor Nelson Rodrigues prezava muito os seus defeitos. Dizia que eles o ajudavam a viver. Sem fazer mistério das suas neuroses, afirmava que "só os imbecis não as têm".

As obras teatrais que deixou estão repletas de personagens obsessivos, movidos por compulsões atrozes e impulsos selvagens. O autor explora os instintos mais baixos da condição humana.

Seus personagens esbravejam, esperneiam, cultivam a arte da traição, da calúnia e do escândalo. Compõem um espelho talvez excessivamente real, com o que não estamos habituados.

Sabia Nelson que sem uma boa dose de obsessão, não se faz coisa alguma. "Não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas." São elas que nos empurram. Que nos fazem viver. Que traçam um sentido para a existência. A obsessão, dizia Nelson, não é uma vergonha, ao contrário, é um valor que precisamos cultivar. Caetano já observou que "de perto ninguém é normal". E nem precisa ser.

Também tive e tenho minhas obsessões, no sentido de apego (ou desapego) exagerado a um sentimento, a um objeto ou a uma ideia desarrazoada. Não gosto de me desfazer das coisas que, para mim, tiveram algum significado, mesmo que seja uma velha foto amarelecida pelo tempo, ou um pião de madeira carcomida do tempo de eu menino.

Detesto autoritarismo, nas suas mais diversas representações. Pode acontecer em forma de bula de remédio, de planilha, de relatório, manuais ou livros de autoajuda, desses que têm a pretensão de reprogramar o indivíduo, como se fosse uma máquina.

Todos os seres humanos têm os seus demônios. São entidades espirituais ao mesmo tempo inferiores e superiores a nós, a quem obedecemos sem saber. E esse outro tipo de autoritarismo nos causa dissonância na cabeça, por mais que tentemos regredir às origens para descobrir como se formam, como se transformaram e nos transformam.

Outra obsessão comum é com a velhice. O que é terrível quando se envelhece é que se permanece jovem. Acho que foi Oscar Wilde o autor da frase. Todas essas facilidades dadas ao idoso, como privilégio de estacionamento, de atendimento nos guichês, e prioridade nas campanhas de vacinação parecem acentuar mais ainda que estejam perto do fim. Já que estão no mundo de lambujem, e vão durar pouco, que os velhinhos pelo menos pensem que estão levando vantagem - parece ser esta a intenção das autoridades.

É tudo muito hipócrita, porque, na verdade, o desejo do mercado é ficar com o dinheiro da aposentadoria. Por isso os empréstimos consignados "a juros baixos", "sem burocracia" (HÔ, HÔ, HÔ).

Sabemos que o importante, no mundo de hoje, o patético é ser jovem. A busca louca e frenética da juventude é a marca do século 21. A moda, as academias, a cirurgia plástica, os suplementos vitamínicos estão aí como provas da obsessão dominante.

"Há uma vergonha da velhice". Nelson lamenta. Recorda a frase que ouviu de uma jovem senhora. "Tenho mais medo da velhice do que da morte". Ela quer ser defunta e não quer ser velha.

A verdade é que o Brasil tem cada vez menos jovens e mais velhos. Isso desequilibra as contas da Previdência. E daí? Nem o Lula está preocupado com o déficit fiscal...

Quem sabe resida aí a obsessão dos machos-velhos de cobiçarem as jovens bonitas, como se estivessem lambendo-as com os olhos. Seria uma forma de dizer a si mesmo: "já fui bom nisso".

Sêneca constata em uma carta ao amigo Lucílio que pior, nessa fase da velhice orgulhosa é conservar os defeitos da juventude. É isso, também, que dá à velhice um certo toque de rabugice e mau humor.

Quando era mais jovem, tive como obsessão a esperança. Única forma de resistir à crueldade do mundo e do viver. Dessa obsessão, infelizmente, a velhice me curou.

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