OPINIÃO

Poeira

Por Claudia Zogheib | 25/10/2023 | Tempo de leitura: 3 min

A autora é psicanalista, especialista pela USP – Departamento de Psicologia, Psicóloga Clínica formada pela USC

Inicio este texto diante das imagens da guerra. Passei o fim de semana em meio as notícias dos Jornais e TV, tentando entender os motivos mais profundos de sua procedência, também me indagando porque repetimos atitudes que no passado já demonstraram seu próprio fracasso e que atualizam mortes minuto a minuto fazendo vítimas de ambos os lados.

Procurei quantas grandes guerras existiram no planeta e fiquei chocada com a quantidade de respostas que o Google me deu. Penso na insignificância que a palavra "diálogo" tem estado nos últimos tempos, meia demodê e talvez um pouco mal vista para quem pensa no confronto como solução para decidir estranhamentos.

Nos poucos grupos de Whatzapp que participo, percebo a quantidade de vezes que pequenas guerras travam os diálogos, motivados quase sempre por divergências religiosas, políticas, patrimonial, identitária, partidária. Noto o quanto estamos engatinhando enquanto indivíduos quando travamos brigas inúteis, e o quanto temos a tendência de cancelar quem não é e pensa igual a nós, assim como o quanto desta atitude "salvando as devidas proporções" tem de semelhança com a guerra.

Reafirmamos diariamente nossa onipotência alimentada pelo nosso próprio narcisismo enganando os sentidos à medida que "cremos" sermos donos do melhor pensamento, da melhor decisão, e com isto construímos muros... destruindo pontes.

A destrutividade diz respeito a capacidade de destruir, e quando nos reportamos ora à combinação dos dois princípios expressos na forma de amor e necessidade, ora nos princípios de vida pulsional, instinto de vida e instinto de morte, ficamos diante do surgimento da civilização insignificante, portanto, da destruição das forças pulsionais fundamentais enquanto funcionalidade.

O sentimento de horror que experimentamos frente às práticas de homicídio do qual convivemos diariamente a ponto de não imaginarmos que um dia podemos chegar a sua plena supressão, nos faz desconfiar que não somos tão bons quanto imaginávamos, e nos acostumamos a creditar à humanidade características socializadoras inatas.

A meu ver a destrutividade enquanto condição que trazemos desde a nossa concepção, poderia estar no seu lugar de pertencimento transformador, à medida que pudéssemos olhar nossas pequenas atitudes cotidianas, desconfiando que certas práticas podem acabar mal enquanto não admitirmos quantas guerras somos capaz de travar por pequenas coisas, assim como quantas vezes nossas atitudes enquanto excluímos, cancelamos, viramos as costas, rejeitamos, desconsideramos, acabam por sinalizar os mecanismos ativos que nossa estrutura psíquica traz consigo, vida e morte.

Temos religião, mas segregamos, pregamos a união, mas excluímos, falamos de ética, mas tomamos atitudes antiéticas, enfim, não vivemos com a devida correspondência naquilo que acreditamos. E como consequência, travamos pequenas guerras diárias.

Esta poeira coletiva que estamos assistindo a céu aberto em Gaza e Israel nos traz uma importante reflexão do quanto o ser humano nesta condição se mistura com a humanidade destruída, fundindo com o inimigo num imenso corredor de poeira, destruição e dor, e enquanto tudo vira pó, sofremos as consequências desta difícil batalha, e de maneira aversiva, nos espantamos com a monstruosa consequência da falta de diálogo. Na guerra, a destruição se mistura em pó sem nacionalidade, casa, identidade e voz.

Se a paz mundial um dia foi palpável, estando fisicamente distante da guerra em Gaza e Israel, cabe a nós decidir quais são as guerras internas e de grupos que podemos decidir não estar, e da maneira como cada um conduz suas convicções religiosas ou de articulação e pensamento, rezar, torcer ou refletir no quanto desejamos que eles possam encontrar a paz que merecem, e fazer de tudo para que a paz deles seja a nossa também.

Música "As Far as Florence", com Gabriel Yared.

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