OPINIÃO

O professor de Literatura

Por Alexandre Benegas | 06/10/2023 | Tempo de leitura: 2 min

O autor é professor de literatura

Culpa dele. Tinha que ensinar o que seria metáfora!? Por que mostrar a linguagem em outro sentido? Já não bastaria ter tudo, tudinho no sentido real, no valor dicionarizado, no conteúdo enciclopédico? Jornais, revistas já nos cospem a mensagem costumeira. 'Veja' isso. 'Isto É' aquilo. Mas não, depois do intervalo, era aula de Literatura. A menina uniformizada, que decorava devidamente os afluentes do rio Amazonas, que sabia o número de elétrons, prótons e nêutrons dos átomos, abandonou o laço de fita do cabelo e, com olhos em festa, desencaixotou do armário um brinquedo novo, plastificado de loja. Boneca bailarina. Deu-lhe nome e sobrenome. Agora, não mais precisava guardar com superlativos de zelo o presente. Bastava vivê-lo, como os dias que se encerram na brevidade do sopro. Nas mãos da menina, a boneca bailarina ganhava passos, movimentos. Pernas ensaiavam geometrias. Braços, arcos rotacionando intervalos de início, meio e fim. Uma caixa de papelão improvisada e uma lanterna esquecida emprestavam à boneca o protagonismo dançante. É a vida, menina!

Assim, ela sorria metáforas e crescia na inocência da estória que finge ser verdade. A semana, na rapidez da abreviação, acontecia. Sabia que o professor de Literatura daria continuidade ao assunto, às metáforas, ainda que envelhecidas. Ela precisava aprender ser desnecessário chorar pelo leite derramado, que quem com ferro fere, com ferro será ferido e que - cuidado! - nem tudo que brilha é ouro. Pois bem, na aula semanal, novas interpretações. Bandeira, Drummond. Aprendia a possuir o encanto do bem-te-vi, a suavidade da pétala. Compreendia conviver com sorriso de promessa, como a chuva que sacia a sede da terra. E pra um futuro grávido de paz e fé, uma vez mais, o professor soprava sementes de sonho a corações repletos de hospitalidade. Apaixonada por alguém, bastou-lhe aceitar que se o amor é uma valsa, vez ou outra dançamos com o par errado. É a vida, moça!

Cursinho, faculdade, estagiária, mercado de trabalho, competição, estresse, com esforço aprendeu que existem lobos na pele de cordeiro. Os desafios não mais amanheciam em estado de rascunho, renovavam-se como livros reeditados. Verdades aspiram ser histórias. Num dia, desses cheirando a domingo, conheceu a indiferença. Mesas dos restaurantes, lotadas de gente com estômagos para mastigar a comida sem olhar pra calçada. Lá fora, um andarilho, um senhorzinho de feições gastas estendia "sins" involuntários com as mãos. É a vida adulta, mulher!

Casada e formada, ela retorna à escola. Precisava rever o professor de Literatura. Abraçá-lo e agradecer-lhe pelos ensinamentos que passaram, ressurgiram numa vírgula numa palavra que insiste em se repetir, numa mudança de parágrafo, dentro de uma interrogação, pendurados numa exclamação… Na secretaria, ela ouve indesejável metáfora. O professor teria realizado a maior das viagens, a eterna. Há pessoas que nascem só para depois ferirem a gente com sua ausência.

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