OPINIÃO

Filósofos racistas e sexistas

Por Zarcillo Barbosa |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista

Um dos mais importantes pensadores portugueses da atualidade, Boaventura de Souza Santos, está sob acusação e ameaça de cancelamento por assédio sexual. Três das suas orientandas no programa de doutorado da Universidade de Coimbra denunciaram o professor de 82 anos por abraços apertados e toques no joelho, acompanhados de sugestões para "aprofundar as relações".

Fiquei triste porque conheço o professor que está sempre no Brasil ministrando seminários, publica artigos e foi muto importante no meu doutorado nas reflexões sobre o social e o político na pós-modernidade. Ele não nega que tenha avançado o sinal, pede desculpas e lamenta ter "nascido no momento em que posturas inadequadas eram normais. Antigamente não eram vistas como inadequadas".

O mestre, a despeito de todos os seus títulos, defensor dos direitos humanos e de um mundo mais justo, continua preso aos seus deveres éticos, estéticos e legais. Se pretende transformar a sociedade, em primeiro lugar teria que levar seus alunos a enxergar que é possível superar os preconceitos com que foram criados. Ele, sociólogo, filósofo, ensaísta, e todos nós, mortais, temos que disso nos conscientizar.

Há uma grande preocupação no mundo ocidental, sobre o lugar dos filósofos racistas e sexistas do passado. Elogie Immanuel Kant e alguém pode lembrar a você que ele acreditava que "a humanidade alcança sua maior perfeição na raça dos brancos" e que "os índios amarelos possuem talento escasso". Louve Aristóteles e você terá que explicar como é possível a um sábio genuíno pensar que "o macho é por natureza superior, e a fêmea, inferior; o homem é o governante e a mulher, sua súdita".

O escocês David Hume, autor do mais importante "Tratado da Natureza Humana" (1753), escreveu suspeitar "que os negros e todas as outras espécies de homens, em geral, sejam naturalmente inferiores aos brancos". Thomas Jefferson, um dos eternos heróis da democracia norte-americana, tinha 180 escravos, filhos bastardos com as mucamas e defendeu: "Todos os homens foram criados iguais e dotados pelo Criador com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade".

Parece que estamos diante de um dilema. Não podemos simplesmente descartar como insignificantes os preconceitos inaceitáveis do passado. Na volta do parafuso, se pensarmos que a defesa de opiniões moralmente repreensíveis desqualifica alguém de ser visto como grande pensador ou líder político, não restará praticamente ninguém na história.

Todos nós somos capazes de pensamento independente, já dizia um dos ideais do Iluminismo. Nada fácil se o pensamento é moldado pelo ambiente em que fomos criados e vivemos, de maneira profunda. Marx alertava: "A tradição das gerações mortas pressiona o cérebro dos vivos". Nem sempre temos disso consciência.

Refletindo: a misoginia e o racismo não são menos repulsivos pelo fato de serem produtos da sociedade. Mas, se levarmos a sério o condicionamento social de crenças e práticas repulsivas, o medo é que todos seriam perdoados e que nos restaria uma tolerância moral inaceitável.

Os comportamentalistas atuais parecem que querem colocar uma pedra em cima dessa discussão. Parar eles, o racismo e o sexismo nunca foram aceitáveis: as pessoas apenas acreditavam, de maneira equivocada, que fossem.

Os modelos distorcidos que criaram a nós e a sociedade cabe a todos modificá-los. Temos que lidar com eles de agora em diante, assumindo responsabilidades perante a lei, pelo menos. No popular - aceita que dói menos.

Os grandes pensadores mortos não têm mais essa oportunidade. "Os mortos não sabem coisa nenhuma" (Eclesiastes, 9:5).

Logo, é inútil desperdiçar nossa indignação jogando suas estátuas no fundo dos rios.

 

 

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