Difícil medir o tamanho da rédea que os outros seguram sobre nosso pescoço. A gente acha que decide com a própria cabeça. Que escolhe os caminhos com os próprios pés. Que diz sim ou não quando quiser. A gente acha, enfim, que é dono do pedaço e do próprio nariz. A gente acha mais. Que tudo pode, é só querer. Aliás, é dessa energia que se nutre a filosofia melada das páginas de autoajuda. Só que a gente se esquece dos outros e de quanto influenciam a nossa vida. A gente se esquece de que os outros têm um nome que merece respeito. O nome deles é história.
Bem antes de virmos à luz. Bem antes do primeiro tapa parteiro e do nosso berro primeiro (muitos outros tapas nada parteiros viriam depois), nossos antepassados já estavam construindo um mundo com tudo que deles herdaríamos. No pacote que nos passariam às mãos, lá estava uma miríade de crenças, valores, costumes, língua, religião, ideologia, o diabo a quatro. Deles recebemos o Deus que temos, a língua que falamos, o jeito de olhar o mundo que, no nosso caso, é o jeitinho brasileiro. Herdamos, enfim, um mundo inacabado, que continuamos a construir para também nunca acabar. Olha só o que disse Auguste Comte: "Os mortos governam os vivos".
De minha parte, confesso-me inteiramente governado pelos mortos. Se existe coisa de que não tenho fiapo de dúvida é que eles mandam em mim. Machado de Assis, por exemplo. O cara entrou na minha cabeça para nunca mais sair. Quer uma prova? "Ao vencedor as batatas." Que a vida é uma guerra, quem não sabe? Um leão a cada dia, quem não mata? Se dormir de touca, o cachimbo cai, quem não sabe? A gente sabe, mas acaba dormindo. Enfim, é a chamada seleção natural darwiniana: na luta pela sobrevivência, vence o mais forte. Coitado do pobre, o pão dele cai sempre com a manteiga virada pra baixo. Ainda ecoa nos meus ouvidos Quincas Borba: "Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". Claro, a vida é guerra, a medalha gosta do peito mais forte. Não deveria ser assim, mas é. A vida poderia ser bem melhor, mas não é. Estou me lembrando do Gonzaguinha, outro morto que me governa. Olha que coisa bonita ele disse: "Eu sei, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será , mas isso não impede que eu repita é bonita, é bonita, é bonita!"
Também eu repito que são muitos os mortos que norteiam os meus passos que, enfim, me governam em mim. Mas confesso também que alguns fiz questão de esquecer. Fiz mais. Matei-os ainda mais do que por si sós morreram. Fico pensado com os meus botões, ainda bem vivos, como a vida é interessante. Muitos mortos ilustres, celebridades que mandam em mim, nunca me conheceram, nunca souberam da minha insignificância e, mesmo assim, estão todos os dias comigo e não param de me cochichar nos ouvidos. E eu os ouço com alegria e gratidão. Como esquecer Gandhi? Luther King? Mandela? Como esquecer a minha vó? Sim, ela mesma! Não gostei nada do seu espanto. Sim, a minha vó Isaura Ferraz de Camargo. Comigo é assim, dou o nome e mostro o sobrenome. Ninguém me foi mais importante do que ela! Justamente a minha vó, que era analfabeta, que não sabia filosofia, economia, sociologia, nove vezes sete, nem mesmo por que o gato mia. Tão inculta (ignorante jamais!), a minha vó, nunca me disse, com palavras, coisa de profundo proveito.
Precisava? Ela sabia me dizer coisas importantes na mais importante linguagem. Não com a boca de falar, mas com as mãos de acariciar os meus cabelos de menino. Não com frases de filosófica citação, mas com seus olhos de ternura, jeito doce de me olhar. Desculpem-me, Machado, Gandhi, Luther King e Mandela, mas quem ganhou foi ela. Sete a um pra minha vó!