"Quando Joel caminha por Copacabana, tem o hábito de olhar para cima avaliando de onde poderia se jogar. Os melhores prédios são os antigos, sem janelas lacradas de vidro fumê e longe das vias principais. Ele conhece a expressão dos passantes em torno de um morto e não quer assustar os outros." Assim começa o romance "Chuva de Papel", recém-lançado por Martha Batalha, uma recifense de 50 anos criada no Rio de Janeiro. A história acompanha o repórter policial Joel Nascimento, um sujeito de mais de 70 anos, barrigudo e decadente, que chega à conclusão de que tirar a própria vida é sua melhor opção.
Com humor e sagacidade, a trama segue por uma rota surpreendente e vai mesclando a crueza das lembranças da vida e da carreira de Joel com dois novos relacionamentos com duas mulheres mais velhas, com quem ele se vê forçado a conviver depois de uma tentativa apatetada de se matar, atrapalhada por um panelaço. A história se passa quase toda durante a pandemia de coronavírus, mas não é uma narrativa do confinamento, não há contagem de mortos e infectados pelo vírus, considerações sobre o apagão do governo ou a paranoia coletiva de que fomos todos vítimas.
"Chuva de Papel" é uma tragicomédia carioca. O Rio de Janeiro é cenário, mas também personagem do livro, todo escrito em "carioquês", o que não o torna inacessível para os leitores das outras regiões do Brasil. Ou do mundo. Se este livro seguir o rumo dos dois primeiros da autora, "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de 2016, e "Nunca Houve um Castelo", de 2018, deve ser lançado em vários outros países, em diversas línguas que terão de ser adaptadas ao dialeto do balneário. Os direitos de adaptação para o cinema já foram comprados pelo produtor Rodrigo Teixeira, assim como os dos dois primeiros romances.
Teixeira comprou os direitos de "Eurídice Gusmão" antes mesmo de o livro sair no Brasil, pela Companhia das Letras. Ele também foi produtor de "A Vida Invisível", filme de Karim Aïnouz lançado em 2019 no Festival de Cannes, onde ganhou o prêmio da mostra Um Certo Olhar. "Gostei muito da adaptação que Karim fez, mas ele fez um melodrama e eu tinha escrito uma tragicomédia", diz, por videoconferência, a autora, logo após chegar ao Rio, vinda de Santa Monica, cidade costeira a 25 quilômetros do centro de Los Angeles, na Califórnia, onde mora desde 2014 com o marido, um porto-riquenho de família cubana, e os dois filhos do casal, de dez e 12 anos. Foi a mudança para os EUA e o casamento com um americano que a fizeram tomar coragem de realizar o desejo de criança de ser escritora.
"Fiquei com muito medo de perder minha ligação com o Brasil. Isso ampliou o interesse que eu já tinha em histórias muito brasileiras", diz ela.
Batalha estudou jornalismo no Rio e começou a trabalhar como repórter aos 18 anos em O Dia, um jornal popular que cobre principalmente notícias da cidade do Rio, como crimes, celebridades e futebol.
"Quando fazia plantão, tinha que ir em delegacia, fazer reportagem em comunidade. Eram tragédias horríveis", conta. "Isso mexeu muito comigo e me abriu os olhos para o lado B da cidade, esse que é narrado pelo Joel no livro." Batalha ainda trabalhou nas redações dos jornais O Globo e fez parte da equipe que criou o Extra, também do Rio. Ela desistiu da profissão quando percebeu que não há um projeto de carreira nos jornais e, de vez em quando, acontecem demissões em massa.
Foi então que decidiu criar uma editora, a Desiderata, que publicou, nos anos 2000, antologias de textos e ilustrações de jornais como O Pasquim e O Planeta Diário. A Desiderata foi vendida para o grupo Ediouro em 2008, quando Batalha decidiu deixar tudo que tinha e apostar num novo amor, seu marido.
"As coisas na minha vida acontecem por decisões intuitivas. Nunca sei o que vem pela frente", diz. Batalha diz que escrever um livro é como fazer um contrato com o leitor. "Tenho o compromisso de manter o leitor envolvido até o final. Meu papel é muito simples, entreter."