CIÊNCIA

Evitemos o termo “lábio leporino”

Por Alberto Consolaro | 25/02/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Ilustração

Shakespeare e ilustração do ato 3, cena 4, em Rei Lear, quando cita com dramatismo o “harelip” ou “lábio leporino”
Shakespeare e ilustração do ato 3, cena 4, em Rei Lear, quando cita com dramatismo o “harelip” ou “lábio leporino”

Era proibido estudar e dissecar o corpo humano na idade média. Depois desta fase obscura da humanidade, voltou-se a aprender e reaprender a anatomia e fisiologia humana nos cadáveres. Nas dissecações se debruçaram os botânicos, que se transformaram em anatomistas brilhantes, e muitos órgãos e partes foram descritas, comparando-os com vegetais e animais.

E apareceram a maçã do rosto ou osso malar, hoje chamado de zigomático, as amígdalas ou pequenas amêndoas, hoje preferindo-se usar como tonsilas, e assim muitos outros nomes que depois foram gradativamente mudando a favor da precisão terminológica.

Os nomes de órgãos do corpo e suas doenças têm histórias e evoluções naturais, adaptando-se a cada situação e época vivida. Um exemplo é o emprego do termo lepra para a hanseníase ou doença de Hansen. Lepra passou a ser nome pejorativo e discriminatório, não mais recomendando-se o seu uso, nem pela população leiga.

ESTIGMATIZANTE

Há décadas, para não dizer séculos, se denomina equivocadamente, os portadores das fissuras labiais como portadores de lábio leporino, pelo fato das lebres apresentarem em seu lábio superior uma fissura mediana que o separa em duas partes iguais. Apenas em alguns poucos centros de estudos e atendimento, este termo não é utilizado rotineiramente. A lebre não é daqui, é nativa da Europa. O termo lábio leporino foi descrito de forma dramática e romanceada por vários escritores do século dezesseis, especialmente Shakespeare em Rei Lear, de 1605.

Faz muito tempo que se recomenda dizer que estes pacientes são portadores de fissuras labiais. Até o termo fissurado deve ser evitado, pois significa gana excessiva, fixação e persistência, levando ao uso pejorativo, de que a pessoa está fissurada, possuída, irada, quase que possessa por uma determinada coisa ou objetivo.

Na evolução das espécies, as fissuras labiais humanas não passam por nenhuma informação antropológica de que seriam remanescentes ou tenha ancestralidade com a forma do lábio da lebre. O uso do termo lábio leporino tem uma carga estigmatizante muito grande para os portadores. O uso da lebre em fotos e esquemas de folhetos, manuais e outros impressos de campanhas, não deve ser empregado por ninguém e deve ser combatido como faz algumas entidades.

Um argumento muito utilizado para justificar o uso do termo lábio leporino é que seria de uso popular, mas isto não corresponde à realidade, pois é amplamente utilizado nos trabalhos científicos e na comunicação entre os médicos e dentistas. O seu uso deve ser evitado e desaconselhado.

Do mesmo modo, deve se evitar o termo goela de lobo para identificar pacientes com fissuras palatinas, correlacionando a anatomia resultante com a garganta bem profunda destes animais, algo também muito inadequado e estigmatizante, sem qualquer necessidade na comunicação sobre o assunto entre pacientes e profissionais.

REFLEXÃO FINAL

Ser portador de fissuras labiais e ou palatinas por si só é estigmatizante e implica em um trabalho de aceitação e inclusão na sociedade. Fazer correlações com animais e plantas nas denominações dos quadros apresentados podem agravar os quadros psicossociais decorrentes. Correlações como lábio leporino e goela de lobo, não trazem nenhum benefício aos pacientes portadores de fissuras labiais e ou palatinas, às suas famílias e nem para a sociedade e muito menos, para a comunidade profissional envolvida no seu tratamento e prevenção. Mudemos!

Alberto Consolaro – Professor Titular pela USP e Colunista de Ciências do JC.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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