Achados e perdidos

Por Alexandre Benegas | 28/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é professor de Língua Potuguesa

O silêncio da igreja era violado pelo fiel velhinho que pigarreava cortando as orações pelo meio. Coisa feia, os fieis encaravam-no com olhos de resmungo. Por mim, tudo bem, agora desolação maior mesmo era a filha do tio da cantina da escola. Beiço gomudo, falante, com dentes arreganhados para o sol, desajeitada e, credo, de perna cabeluda. A menina suava como se estivesse num eito de meio-dia. Assim fica difícil! De belo só os olhos agateados, ah! e o cuidado com a linguagem. Formal demais. Adorá-la-ia se ela fosse diferente. Pô-la-ia acima de tudo. Donzela que era se caísse na saliva de um homem de culpa escondida, seria o mesmo que torrão de açúcar na boca se desfazendo num instante. Tinha também o caminhão da transportadora roncando marcha na rua grande. Ruído de gente desperta, ruído de gente apressada pelo mundo quebrando o silêncio do domingo dormido. Pode ser isso.

Pode também ser da última vez que, a última vez, agora esmaecida como a cor dos cabelos à falta de tintura. A casa, agora suja e escura, com reboco de barro vermelho, sim, ela fora nova, perdera a brancura de sua mocidade. A boneca careca, a caneca escolar, a palavra inaudita, definitivamente inaudita. Pode e por que não ser o irmão abusado experimentando bondade ingênua, a inocência da filha cheirando a pé de roseira, a coalhada com mel, o bolo que se mastigou em agradecimentos. Pode, eu sei, ser o grito lancinante da cólica de rim e essa gente esquecida em busca de um olhar que a legitimasse de um jeito que o CPF não faz. Do que fica e do que parte, a viagem desmarcada, o livro não devolvido, o filme oscarizado, a coleção de vinil de saudades rotacionais e, é claro, conversa de barzinho apetitando o desejo de viver. Dos eventos e formaturas estocados de alegrias efêmeras e amizades protocolares, desengravatou do pescoço a mentira provisória que se estatela em ilusão definitiva, abandonou a importância da cara, isso mesmo, dessa cara que, certa vez, ela considerou ter tido no baile social.

Da primeira namorada. De quando o verbo dele aproximou-se cuidadosamente do verbo dela. Agitada em interjeições, as frases os conduziram à inevitabilidade do beijo. Dos dias empatados até o filho nascer e nossas vidas passarem para a primeira divisão. Memórias. Vividas, imaginadas, colecionadores que somos. Achados e perdidos. Sonhos. Memórias tidas como troféus, como perdas descartadas do nosso Curriculum vitae, nosso Certificado de vida. Por ele, irrefutavelmente é que se observa a riqueza de um colecionador. Ainda assim, cuidado. Há informações do nosso currículo impróprias a nós mesmos, a fim de nos preservar das mentiras que insistimos em contar. E dessa forma, nossa submissão ao mundo diante do que vemos, ouvimos, sentimos. Bem assim vivendo, amando e aprendendo com a vida acontecendo em pleno gerúndio. Da gramática subjetiva: dos acontecimentos desejosos que voltassem ao momento, faríamos diferente, entendo o futuro do pretérito. Do amor zeloso, preparado quando surgir para que se projetasse ao futuro do subjuntivo. Da palavra-sangue, embora desossada, se coagula em dor. Das lembranças Coca-Cola, retornáveis.

Amigos? Oswaldo Montenegro, na canção 'A Lista', nos dá a sugestão: "Faça uma lista de grandes amigos. Quem você mais via dez anos atrás. Quantos você ainda vê todo dia. Quantos você já não encontra mais." Rumando linha oposta, dói esse amor possessivo, do amor como desejo de permanência do outro em nossas vidas. Sim, pois o amor é causa respeitosa e consequência libertadora. O contrário, é desviver o vivido.

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