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A memória viva de Bauru

Gustavo Cândido
| Tempo de leitura: 10 min

Aos 80 anos, completados no último dia 13 de agosto, o memorialista Gabriel Ruiz Pelegrina é uma unanimidade quando o assunto é a história da cidade. Bauruense nato, Pelegrina conhece como poucos os detalhes do surgimento e desenvolvimento de Bauru graças a sua memória prodigiosa - que o torna capaz de lembrar com minúcias de fatos acontecidos há muitas décadas - e o seu ótimo hábito que guardar documentos. Trabalhador incansável, ele atualmente divide o seu tempo como coordenador do Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica de Bauru e Região Gabriel Ruiz Pelegrina, na Universidade do Sagrado Coração (USC), local onde estão quase todos os documentos que ele guardou por toda a vida, e como diretor do departamento de proteção ao patrimônio histórico no Centro Cultural Mestre Cirilo. Foi na sua sala no Centro Cultural, decorada - como não poderia deixar de ser - com fotos históricas de Bauru, que Gabriel Pelegrina recebeu o JC para a seguinte entrevista.

Jornal da Cidade - Como o senhor começou a se interessar pela memória da cidade, por guardar objetos e documentos históricos? Gabriel Ruiz Pelegrina - Eu trabalhava na ferrovia em Três Lagoas, no Mato Grosso e lá assinava o jornal Correio da Noroeste. Lia o jornal inteiro mas gostava muito de ler as notas históricas o José Fernandes escrevia. Gostava porque comecei a aprender coisas sobre Bauru. Ai tem uma coincidência também. Quando cheguei em Três Lagoas fui morar na casa de um engenheiro que, por ser viúvo, tinha alguns rapazes para lhes fazer companhia. Ele se chamava José Joaquim Cardoso Gomes e tinha sido ele quem tinha montado em Bauru a primeira usina de luz elétrica na cidade. Ele também havia sido juiz de paz e tinha feito o casamento dos meus pais, em 1916, em Bauru. Ele me contava alguma coisa sobre a história da cidade e até me deu algumas coisas que eu guardo. Então comecei a me interessar pela história da cidade.

JC - A partir disso o senhor começou a guardar documentos?Gabriel - Comecei a gostar de história e a juntar uma grande quantidade de material. Quando voltei para Bauru, por outra coincidência, fui convidado a participar do corpo de redatores do Correio da Noroeste, onde fiquei trabalhando por três anos, mesmo continuando a trabalhar na estrada. Lá eu passei a ter acesso a todos os arquivos do José Fernandes, que mais tarde, mais de trinta anos depois, viriam parar na mão por uma doação da família para o museu.

JC - O senhor conhece cada documento que o senhor guardou, tem noção exata da quantidade? Gabriel - Conheço tudo. Em casa não caberia tudo o que eu guardei, precisaria de cinco casas para isso. Foi ai que, através do professor Muricy (Domingues), foi fundado o Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica de Bauru. Levei para lá todo o meu material e, com o tempo fomos fazendo convênios. Hoje temos mais de cinco milhões de documentos sobre Bauru. Temos prateleiras lotadas com documentação. Fizemos convênios com o poder judiciário e temos todos os processos de inventários e crimes de 1911 a 1950, por exemplo. Temos todos os processos de casamento - mais ou menos 700 mil documentos - do Cartório de Registro Civil, temos toda a correspondência da Câmara Municipal desde os primórdios, da época de Fortaleza e todos os livros de ata. Temos todo o documentário antigo da diocese de Bauru, temos mais de 1,5 mil coleções de jornais na nossa sala da impressa, além de vários acervos, fotografias, uma biblioteca de quase mil volumes. Agora levamos para lá, através de convênio, os arquivos do 4.º Batalhão Policial. Foram precisos dois caminhões para isso. Tudo sobre Bauru está lá hoje.

JC - O senhor não guarda mais nada em casa?Gabriel - Ainda tenho algumas coisas que não levei para lá por falta de espaço.

JC - Como o senhor guardava tanta coisa em casa?Gabriel - Eu tenho um quartinho nos fundos, mas chegou num ponto em que eu comecei a pôr jornais até na sala de visita. A casa toda passou a cheirar papel velho e foi então que a minha esposa quis que eu tirasse as coisas de lá. Qualquer mulher reclamaria daquele cheiro mesmo.

JC - No acervo do museu estão só documentos ou também objetos?Gabriel - Temos o maior acervo de objetos tridimensionais históricos, a maior peça museológica de Bauru está lá. É uma farmácia de 80 anos, montamos ela com todas as prateleiras, frascos, tudo o que tinha quando funcionava. Temos também muitos troféus, discos, etc. O acervo é muito grande. Agora estamos começando a trabalhar no museu sacro. Temos uma equipe de gabarito trabalhando lá, entre elas a professora e doutora em história Terezinha Zanlochi.

JC - Nesses anos todos de pesquisa e coleta de material histórico, qual o documento ou objeto mais raro que o senhor encontrou ou guardou? Gabriel - Temos ai em cada setor um documento importante. Por exemplo, a primeira coleção de jornais de Bauru, de 1906. Se chamava O Bauru. Temos documentos da época de Espírito Santo da Fortaleza, de antes da proclamação da República. Temos o acervo original do Rodrigues de Abreu, inclusive o manuscrito daquele poema, O Bauru. Temos órgãos de música raros, gramofones, vitrolas antigas, muita coisa importante.

JC - Tem algum objeto pelo qual o senhor tem um carinho especial?Gabriel - Eu gosto de música, embora não toque nenhum instrumento, por isso gosto desses órgãos antigos, gosto de mexer com isso.

JC - Qual a maior dificuldade de juntar objetos históricos?Gabriel - Para mim era localizar documentos. Acho que consegui localizar tudo o que queria, mas é difícil. Antigamente, quando comecei, fui pesquisando em cima de outras coisas que já haviam sido escritas. Mas também pesquisei nos meus próprios documentos e descobri algumas coisas. Por exemplo: todos no passado diziam que na mudança da sede de município de Fortaleza para Bauru, que Bauru tinha eleito quatro vereadores contra dois de Fortaleza e assim, por maioria, eles transferiram a sede do município. Mas a história não é assim. Bauru elegeu os seis vereadores e sei disso porque tenho o livro de ata da eleição, até com os votos que eles tiveram. Então não tenho dúvida. Eu nunca afirmo um dado se não tiver um documento para comprová-lo, por isso não admito que alguém me conteste. Sei eu não sei eu não falo, fico quieto.

JC - A história de Bauru tem outras contradições como essas?Gabriel - Bauru se desenvolveu em torno da Noroeste, que começou a ser construída a partir de uma ordem do então Presidente da República Rodrigues Alves, em 1904. Há uma dúvida sobre o fato da Noroeste ter saído de Bauru ao invés de Pederneiras ou Agudos. Eu entrevistei há mais de 20 anos o filho do Coronel Azarias Leite, Américo Leite, e ele me contou (e eu gravei) que era para a Noroeste ter saído de Pederneiras, mas acabou saindo de Bauru porque os engenheiros que vieram para construí-la decidiram. O pessoal das duas cidades dizem que era para ter saído de cada uma delas.

JC - Bauru é uma cidade de comércio desde que começou a se desenvolver por causa da ferrovia. O que o senhor, que acompanha de perto o crescimento da cidade, imagina para o futuro de Bauru. Ainda vamos continuar sendo uma cidade de comércio forte e poucas indústrias? Gabriel - Houve uma modificação muito grande da cidade com o tempo. Bauru já foi movida pelo café, até a crise de 1929, depois foi a vez do algodão. Nas décadas de 30 e 40 tivemos o maior impulso de progresso da cidade com a instalação da Anderson Clayton, do Moinho Santista, mais de uma dezena de máquinas de beneficiar algodão, fiação de seda, a tecelagem Matarazzo. Foi uma evolução muito grande. Agora, a cidade foi se encaminhando para se tornar um centro comercial e hoje o que movimenta a economia da cidade é o comércio porque as pessoas da região vêm comprar aqui. Acho que dificilmente a cidade vai ser industrial um dia porque as indústrias se instalam onde existe matéria prima.

JC - Todas essas informações que o senhor cita são de cabeça. O senhor sempre teve essa memória boa? Gabriel - Eu sempre tive muita facilidade em guardar datas. Eu me transporto para o ano do qual eu estou falando, lembro de tudo de tanto escrever sobre esses assuntos. Já escrevi mais de mil crônicas para jornais, já escrevi vários livros, então sei de todos os prefeitos, todos o presidentes, muitas datas...

JC - O senhor não pensa em parar de trabalhar?Gabriel - Não. Agora fizeram essa biografia minha (leia mais no boxe) e o livro termina falando sobre os meus amigos médicos e os que me atendem quando necessário, que sempre dizem Gabriel, não pare de trabalhar, mas não exagere. Eu sinto bem trabalhando, acho que 24 horas por dia é pouco, o meu dia tinha que ter 30 horas, no mínimo. Também trabalho de noite, leio, não sou de ficar vendo televisão. Só vejo o noticiário para ficar informado. Mas eu sempre aproveitei bem o meu tempo, você nunca vai me ver jogando dama no jardim ou passeando pela Batista e batendo papo, aproveito direitinho as horas que eu tenho.

JC - O senhor não tem um possível sucessor, já pensou nisso?Gabriel - Aqui em Bauru, existe uma porção de gente que quer fazer isso mas eu percebo neles uma pressa maior do que existia na minha época. Eles não descansam como eu descanso. Eu também peguei uma fase em que era mais sossegado pesquisar, o mundo hoje anda muito corrido. Então embora muitos queiram me substituir, queiram aprender, não acho que vão chegar a fazer isso. É preciso gostar, levar a sério e ter muito tempo, mas para esse pessoal de hoje tudo é muito corrido, eles não vão ter tempo. Eu estou procurando deixar o máximo de pesquisas escritas através dos livros. O máximo que eu posso eu deixo. Já brinquei com o Luciano Dias Pires sobre a necessidade de deixarmos alguém para nos substituir, ele diz que ainda não está pensando nisso. Eu também não penso na morte, mas é uma coisa certa, a única coisa certa na vida de uma pessoa. Então a gente não sabe até onde vai, ninguém sabe.

JC - O senhor acha que as gerações mais novas se interessam menos pela memória do que antes? Gabriel - Eu percebo que as gerações de agora querem mais ver coisas do que ler, tanto é que a orientação que se tem hoje é que não se façam livros muito grandes. Eles precisam ter, no máximo, de 100 páginas para serem lidos rapidamente e que tenham ilustrações e sejam objetivos. Então essa questão do tempo é importante hoje. Uma coisa boa que temos hoje é que as escolas estão ensinando para os alunos primeiro a história do município para depois ensinar o resto. Isso desperta na criança o interesse pelo passado.

JC - O senhor é reconhecido por órgãos e instituições de Bauru pelo seu trabalho, o que acha disso?Gabriel - Fico muito satisfeito com esse reconhecimento. Ninguém vem me criticar porque a gente faz um trabalho útil para cidade. Recebi honrarias da Câmara Municipal, do Rotary Club, da Universidade, dos Ex-Combatentes de 32, então ficou contente, qualquer um ficaria.

Biografia (*)

No mês passado Gabriel Ruiz Pelegrina ganhou uma biografia. Gabriel - História e Trajetória, foi escrito no ano passado como projeto de conclusão pelas jornalistas Fernanda e Renata Theodoro de Carvalho, na época estudantes da Unesp - Bauru, e impresso pela Document Center, da Xerox, localizada na Universidade do Sagrado Coração (USC).

Em suas 103 páginas, a obra traz todo a trajetória do memorialista, do seu trabalho na ferrovia à criação do Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica de Bauru e Região, vinculado à USC, que leva o seu nome. Resolvemos vasculhar a vida dele para descobrir de onde vinha essa mania de guardar coisas históricas que ele tem, explica Fernanda . Já que ele conta a história de todo mundo na cidade, por que não contar a sua história?, completa.

Gabriel - História e Trajetória, pode ser adquirido por R$ 5,00 no Núcleo de Documentação, que fica em frente à USC, na quadra 10 da rua Irmã Arminda.

(*) Colaborou Ricardo Polettini

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