Depois de queimar toda uma galeria de ilustres varões da história pátria, desde Pedro Álvares Cabral a Tamandaré, do Barão do Rio Branco a Machado de Assis, passando por Tiradentes, a Casa da Moeda resolve lançar na fogueira inflacionária nossa inocente fauna. Está chegando aos Bancos a nota de dois reais com a estampa ecológica de uma tartaruga. Pobre quelônio! Em breve será a vez do mico-leão-dourado na nota de R$ 20,00. Já não poderemos mais dizer que a política social do governo FHC é tão falsa como uma nota de dois reais. Agora, pelo menos ela passa a existir embora já desgastada pela corrosão inflacionária em tenra infância.
Índices inflacionários, neste País, só não servem para corrigir tabela do Imposto de Renda e o salário dos trabalhadores. Nos tempos de José Sarney - esse que é pai da ilustre dama maranhense que periga ser a nossa primeira presidenta da República -, a inflação de 85% ao mês causava vergonha. As famílias dos homenageados com efígies no papel-moeda imprestável passaram a repelir a honraria. Foi o caso da família do folclorista pernambucano Câmara Cascudo. Ao saber que o seu conhecido marido iria ter a cara estampada no medalhão de não sei quantos mil cruzados, a viúva reagiu de maneira insólita - cruzes! Outro homenageado, Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras, deve ter feito caretas no túmulo no momento em que soube que justamente a Cadeira 38, da qual é patrono, seria ocupada pelo ex-presidente do Cruzado, ali entronizado por causa de um enxame de doloridos marimbondos de fogo.
FHC foi mais previdente que Sarney. Parentes de bichos não reclamam. Humilhação é uma espécie de sentimento próprio do ser humano. A única exceção foi um dia a cachorra do meteórico ministro Magri. Depois da tartaruga e do mico, o brasileiro que ainda tem o privilégio de manusear dinheiro, vai ter que conviver com onças, passarinhos, peixes e o tatu-bola. Pelo menos em papel pintado.
Saudades do tempo em que as teimas levavam às apostas. Para selar o desafio alguém dizia em alto e bom som - Vale um Barão! Rio Branco passou à história por ter subornado o ministro boliviano das Relações Exteriores com dois cavalos brancos. Em troca nos foi dado o extenso território hoje ocupado pelo Estado do Acre. O diplomata teve seus dias de glória também como moeda-papel mas igualmente caiu em desgraça. Foi desvalorizado assim como suas malandragens à sombra do Itamarati que os livros escolares tratam de esconder.
Mudamos tanto de padrões monetários que são precisos exercícios de alta matemática para descobrir a equivalência de poder de compra do salário-mínimo de anos atrás com o de hoje.
A libra esterlina levou quatro séculos para chegar à nota de 10. Somente meio século depois da vigência da nota de 20 é que a rainha Elizabeth foi ornamentar a nota de 50. Se você der um Benjamin Franklin, que vale cem dólares, para pagar os 40 dólares que o motorista de táxi cobra por uma corrida a Manhattan desde o Aeroporto Kennedy, ele simplesmente vai chamar a polícia. Não há troco, sem falar no risco da nota ser falsa e a corrida redundar num prejuízo insuportável.
Na Velha Albion, mesmo com o Euro imposto pelo Mercado Comum e a divisão da libra pelo sistema decimal antes fracionada em shellings, os ingleses continuam valorizando o antigo. Mesmo no tempo da guerra, com as bombas V2 caindo sobre Londres e os esforços concentrados para vencer o inimigo, o dinheiro nunca perdeu o valor de face. Os ingleses sabem disso e o têm como símbolo nacional tão sacralizado como a própria bandeira. Nas lojas mais tradicionais, são comuns os cartazes de advertência aos fregueses: Old Money Spoken Here. Ou, numa tradução menos literal: Dinheiro velho aqui tem voz. E fala alto...
(*) Zarcillo Barbosa é colaborador do JC.