No dia 24 de setembro de 2001, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, ao falar na Assembléia Geral dessa organização, fez uma reflexão sobre o assassinato em massa de 11 de setembro e disse que “esse ataque foi contra o império da lei, ou seja, contra o princípio fundamental que permite às nações e aos indivíduos viverem em paz ao seguirem regras previamente acordadas e solucionarem suas disputas através de procedimentos estabelecidos de comum acordo. Portanto, respondamos com a reafirmação do império da lei tanto internacional quanto nacionalmenteâ€.
No entanto, isso foi exatamente o que NÃO aconteceu. A Carta das Nações Unidas foi manipulada de modo a deixá-la irreconhecível, para dar legitimidade internacional à ação militar norte-americana no Afeganistão, que já está quase concluída. Se o que aconteceu em 11 de setembro foi uma declaração de guerra e não um crime atroz, então, existem na Carta procedimentos apropriados a serem seguidos. Seu artigo 51 permite o direito de imediata autodefesa no caso de qualquer Estado ser vítima de um ataque armado.
O delito do Afeganistão foi o de recusar-se a entregar incondicionalmente Ossama Bin Laden, que para os Estados Unidos é o primeiro suspeito. Em todo caso, o artigo 51 não dá um ilimitado direito de resposta militar. O país afetado pode apenas realizar uma ação imediata “até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionaisâ€. Assim, esse artigo não dá um cheque em branco para toda subseqüente ação militar. Esta é uma afirmação pedante? Em absoluto. A Organização das Nações Unidas foi criada em 1945 “para salvar as gerações próximas do sofrimento da guerraâ€, não para fazer com que fosse mais fácil para as grandes potências ir à guerra contra os países menos poderosos ou derrubar governos duros e impopulares quando o desejarem.
O que dizer, então, das decisões do Conselho de Segurança? Em duas resoluções separadas (a 1368, de 12 de setembro, e a 1373, de 28 de setembro) o Conselho autorizou os Estados a darem “todos os passos necessários†para se contraporem aos atos de terrorismo. Alguém poderia ter pensado que uma autorização para iniciar o bombardeio deveria ser mais específica, mas o Conselho de Segurança usou uma frase semelhante na resolução adotada para dar autorização antes da Guerra do Golfo e, agora, voltou a utilizá-la. Por que, então, a insinuação a respeito do sério dano causado ao império da lei? Porque, precisamente, o Conselho de Segurança por si só não tem a faculdade de autorizar ações militares quando bem entender.
Quais eram os outros caminhos que havia pela frente? Nunca o saberemos com certeza. Uma mediação por uma terceira parte integrada por Estados muçulmanos nunca foi tentada. Nunca deveriam ser descartadas de cara as ofertas do Taleban para entregar Bin Laden para que fosse julgado em um terceiro país, caso as provas de sua cumplicidade fossem apresentadas. Reclamar Bin Laden “vivo ou mortoâ€, segundo as palavras do presidente Bush, não é uma expressão legal, mas própria da mitologia do selvagem Velho Oeste. Pelo menos, deveria ter sido feita uma solicitação imediata à Corte Internacional de Justiça de Haia para que desse uma opinião legal!
Parece que não se aprendeu nenhuma lição com a bomba que caiu em Lockerbie ou com os crimes de Pinochet. Foram anos de diplomacia e negociações para levar a julgamento dois líbios acusados do atentado de Lockerbie. Na época, ninguém sugeriu que deveríamos enviar bombardeiros B52 para jogar bombas sobre a Líbia. Quando Pinochet, um terrorista apoiado pela CIA, foi reclamado pela Espanha, primeiro exigimos provas, que imediatamente encaminhamos num processo legal que terminou na Câmara dos Lordes, onde decidiu-se que as provas eram suficientes para conceder a extradição. Felizmente para Pinochet, um singular parecer médico o salvou de ser entregue a um tribunal de Justiça espanhol.
Abusar da Carta das Nações Unidas para perseguir um suposto criminoso não é prestar um serviço à humanidade. Se queremos nos mover em direção a um sistema de governo mundial baseado na lei, na Justiça e na solução pacífica dos conflitos, devemos manter e não manipular as estruturas internacionais criadas de comum acordo e com tanta esperança há mais de 50 anos. (Bruce Kent, ex-presidente do International Peace Bureau e atual vice-presidente da Campanha para o Desarmamento Nuclear e da Pax Christi do Reino Unido)