O perfil das vítimas de violência de gênero (denominação dada à violência contra a mulher na vida social, privada e pública) mudou consideravelmente desde a inauguração da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), há 15 anos. De acordo com a delegada Rejani Borro Ortiz Tiritan, a população de classe média e alta deixou de lado o preconceito e passou a denunciar os atos violentos a que foi submetida. “No começo, nós registrávamos mais ocorrências de pessoas de um nível social mais baixo. Hoje a situação mudouâ€, explicou.
Para a delegada, isso não significa que as mulheres das classes A e B passaram a ser agredidas, mas sim que aprenderam a buscar a sua defesa. “A vergonha falava mais alto. Hoje, elas sabem que só denunciando vão conseguir se ver livres dos atos violentosâ€, salientou a delegada.
De acordo com dados da DDM de Bauru, no ano passado as ocorrências mais comuns foram as lesões corporais, com 1.155 registros. Em seguida vieram as ameaças, com 871 casos e as ocorrências por calúnia, difamação e injúria, com 208 registros.
Rejani explicou que outra mudança observada no comportamento das mulheres que sofrem violência é que elas aprenderam a denunciar os problemas antes deles se tornarem mais graves. “Como deu para perceber, as ocorrências de ameaça cresceram, ou seja, muitas mulheres, ao primeiro sinal de agressão, já recorrem à políciaâ€, destacou.
Ela considera essa atitude de extrema importância, pois trata-se de uma maneira de se prevenir de atos mais graves. “Temos o caso de uma senhora que nos procurou várias vezes para registrar queixa contra o marido, mas ela nunca levava até o fim as denúncias, evitando fazer exames de corpo-de-delito. Depois de um tempo recebendo ameaças e apanhando, ela foi assassinadaâ€, contou.
A maior parte da violência de gênero ocorre dentro de casa. Segundo dados da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privadoâ€, realizada pela Fundação Perseu Abramo, entidade ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), 70% dos responsáveis pelas agressões são maridos ou companheiros, sendo que o ciúme desponta como a principal causa aparente das brigas com 21% das respostas.
A delegada da DDM lembrou que muitas mulheres disseram que apenas o fato de se arrumarem melhor para trabalhar já é motivo para agressões. “Tem marido ou parceiro que acha que, se a mulher se produz para trabalhar, é porque ela tem um amanteâ€, salientou.
Sem os filhos
Muitas vezes, o fato da mulher pedir a separação por acreditar que não ama mais o marido gera transtornos para o resto da vida.
Foi o que aconteceu com a comerciária F.I., de 35 anos, (ela preferiu não se identificar), que abriu mão da guarda dos filhos para se livrar das surras do marido. “Quando eu descobri que já não gostava mais do meu esposo, tentei me destruir. Comecei a beber para agüentar ficar ao lado deleâ€, conta.
Na primeira vez em que ela falou que queria de separar, acabou apanhando na frente dos filhos. Essa cena se repetiu em todas as outras tentativas de conversa sobre o rompimento do casal. “Teve uma vez que os vizinhos chegaram a chamar a polícia, mas eu disse para os soldados que estava tudo bem e eles foram emboraâ€, contou.
Uma das brigas resultou em um dedo da mão quebrado e muitos hematomas. F. contou o que tinha acontecido para a sua patroa, que a levou até a DDM. “A polícia avisou o meu marido para ficar fora de casa por alguns dias. Ele ficou louco e passou a me perseguir na rua. Apanhei e fui ameaçada de morte por eleâ€.
O marido disse que só aceitaria a separação se ela abrisse mão da guarda das crianças. “Demorei para fazer essa escolha. Continuei apanhando por um bom tempo até que sai de casa e deixei as crianças com ele. Mas, nem isso foi suficienteâ€, destacou.
O ex-companheiro de F. não aceitou ao menos que ela morasse no mesmo bairro, pois isso soava como uma provocação para ele. A comerciária acabou mudando de cidade para fugir da violência física, mas contou que teve de se submeter a um outro tipo de violência: a dor de viver longe dos cinco filhos. “Não sei se a minha decisão foi acertada, mas não achei justo submeter meus filhos a tantas cenas de violência. É como se alguém perguntasse: ‘as suas pernas doem? Corta elas que a dor passa’. O difícil é ter de andar de muletas. Nunca mais será a mesma coisaâ€, disse.
Mulher está mais ciente dos seus direitos
Mais informada e batalhadora. Assim a advogada Renata Maffini Anastasio define a mulher de hoje, que está mais ciente dos seus direitos e sabe brigar em igualdade pela sua causa.
Esse esclarecimento todo, segundo ela, se dá através de um índice maior de leituras de jornais e revistas e do fato de a mulher trabalhar fora e assumir a cada dia uma nova responsabilidade.
A advogada relata que até bem pouco tempo, as mulheres mais velhas tinham receio de se separar ou de buscar seus direitos. Mas hoje este quadro é bem diferente.
“A lei ampara a responsabilidade dos pais em prover os filhos de alimentos, garante também os bens que lhe foram instituídos no regime de matrimônio, também não desampara quem passou por muitos anos vivendo em função de uma pessoa, cuidando dela e de seus filhos. A mulher está buscando o que lhe pertence, sem os medos anterioresâ€.
Renata cita que muitas chegavam a se envergonhar da situação. Hoje já batalham e ganham a guarda dos filhos, um dos processos que mais aplica quando se trata de direito familiar.
â€œÉ claro que nem tudo se aplica a todos os casos. Mais de um modo geral, a mulher está levando vantagem perante o homen quando entram na disputa pelos filhos e sua criação.â€
A advogada conta que o número de processos amigáveis também tem aumentado e muitos acordos são feitos no mesmo dia da primeira audiência.
Atendimento deixa a desejar
A busca por um atendimento adequado para as vítimas de violência é um dos desafios do Conselho Municipal da Condição Feminina. Para a presidente da entidade, Acyr Santinho Motta, apesar dos vários avanços da mulher como cidadã e trabalhadora no último século, ainda existe uma lacuna a ser preenchida no quesito “tratamento dignoâ€. “Em Bauru, ainda falta um mecanismo que dê apoio às vítimas de violênciaâ€, disse.
Ela destacou que, embora tenha um espaço apropriado para denunciar seus agressores, a mulher bauruense carece de um atendimento especial pós-agressão.
A falta de uma casa-abrigo é citada como uma das prioridades do Conselho. “Se uma mulher sofre agressão dentro de casa, ela não tem onde ficar para se livrar do marido ou companheiroâ€, disse.
Acyr salientou que já existe um projeto pronto para a construção desse espaço, mas que está paralisado esperando recursos financeiros e humanos para o início da obra. “Nós já reivindicamos várias vezes, mas ainda não foi possível conseguir essa verbaâ€, disse.
Outro desafio do Conselho é montar um esquema de atendimento linear para vítimas de estupro. “Hoje a mulher que sofre esse ato tem de se socorrer sozinhaâ€, disse.
A idéia, de acordo com a presidente do Conselho, é interligar o atendimento. O primeiro ponto a ser procurado pela vítima seria o Pronto-Socorro. Lá, ela receberia os cuidados médicos iniciais e seria ouvida pelas investigadoras da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). Um médico do Instituto Médico Legal (IML) também compareceria ao local para recolher provas do abuso para constar no inquérito policial. Depois de ser atendida por esses profissionais, a mulher seria encaminhada à Maternidade Santa Izabel, onde receberia a medicação recomendada para o momento (coquetel anti-HIV e pílula do dia seguinte). “Tudo isso seria muito importante para ajudar na recuperação da pessoa que sofreu um ato de tamanha violênciaâ€, disse.
Apesar da importância desse sistema de atendimento, não existe nenhuma previsão de quando ele poderá ser colocado em prática em Bauru. “São desafios que temos que correr atrás sem nunca desistirâ€, disse.