Dos índios cain-gangues em Bauru restam apenas os triângulos superpostos formando pontas de lanças presentes na bandeira municipal. Primeiros moradores da região, hoje os caingangues não mais vivem na cidade, nem mesmo na reserva de Avaí como se acredita.
“Há apenas terenas e guaranisâ€, atesta a jornalista Fernanda Villas Bôas, que pesquisa a simbologia dos cain-gangues em sua dissertação de mestrado, em andamento na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Bauru.
Estimativas do final do século 19 apontam que cerca de 2 mil caingangues viviam na região de Bauru. Em 1915, sua população se resumia a 200 pessoas, de acordo com contagem do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), hoje Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Com a chegada das ferrovias, as empreiteiras contrataram bugreiros, cuja primeira tarefa era limpar o terreno. E por isso entenda não só limpar o mato como também ‘limpar’ os índiosâ€, afirma o historiador João Francisco Tidei de Lima, coordenador do Centro de Memória Regional da Unesp/RFFSA e professor do departamento de história da Universidade do Sagrado Coração (USC).
O memorialista Gabriel Ruiz Pelegrina, diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura e do Núcleo de História Regional da USC, confirma essa história. “Cheguei a entrevistar um ferroviário que afirmou ter recebido ordem do empreiteiro para matar índios.â€
Dessa ‘limpeza’ resultaram inúmeros conflitos, que colocaram para correr muitos ferroviários e encheram as páginas de jornais como O Estado de S. Paulo, o qual entendia a presença dos caingangues como entrave para o progresso do estado de São Paulo.
Diante das inúmeras mortes dos dois lados - de índios e ‘brancos’ -, a Câmara Municipal e o prefeito (que até a década de 30 era eleito pelos vereadores), permaneciam mudos. “Era uma omissão completa. Era como se não estivessem ocorrendo conflitosâ€, afirma Lima, que teve o embate entre caingangues e bugreiros como tema de sua dissertação de mestrado.
Na dissertação, intitulada “A Conquista da terra e a destruição dos índios na região de Bauru†e defendida em 1978 na Universidade de São Paulo (USP), o pesquisador conclui que os caingangues reagiram com violência à chegada dos brancos porque estavam defendendo seu território.
“Para os índios, a posse da terra é fundamental, é a garantia da sobrevivência. A manutenção da sua sociedade é baseada entre o equilíbrio de terra e mão-de-obra. Para os brancos, a terra é negócio, objeto de lucroâ€, explica o historiador.
E por causa dessa terra inúmeros brancos morreram, principalmente funcionários contratados pelas empreiteiras para limpar a mata e instalar os trilhos. De alguns operários, a população só voltou a ver as cabeças cortadas, devolvidas pelos índios como aviso, relata Pelegrina.
“Em um encontro com o Barão do Rio Branco, Joaquim Machado de Melo disse que cada dormente da ferrovia representava um operário mortoâ€, conta o memorialista. Outro a morrer nas mãos dos índios foi Monsenhor Claro, hoje nome de uma das principais ruas do Centro de Bauru. Ele foi morto quando viajava de canoa pelo rio Feio. “Foi trucidadoâ€, garante Pelegrina.
Apesar das perdas dos brancos, nada se compara à dizimação dos caingangues. Além dos conflitos de terra, a gripe e o sarampo trazidos pelos espanhóis foram responsáveis por reduzir a população indígena a 10% do que havia no final do século na região de Bauru. Isso tudo em apenas 20 anos.
“Eles foram comidos de forma violentaâ€, sintetiza João Francisco Tidei de Lima. Por isso, apesar dos estudos heráldicos apontarem o vermelho da bandeira e do brasão como símbolo do sangue bauruense derramado, pode-se atribuir também à cor a representação do extermínio dos cain-gangues do solo bauruense.
Hoje, no estado de São Paulo só há caingangues nas reservas de Icatu e Vanuíre, instaladas, respectivamente, próximas a Braúna (região de Penápolis) e Tupã.
Índios eram organizados em ‘comunismo primitivo’
A importância da terra para os caingangues pode ser explicada por sua organização, uma espécie de ‘comunismo primitivo’, como descreve o historiador João Francisco Tidei de Lima.
“Na sociedade caingangue, todos trabalhavam e o produto final era repartido igualmente entre todos. O trabalho tinha como base a coleta, a caça, a pesca e a agricultura, sendo politicamente dirigidos por um chefeâ€, conta Lima, que pesquisou a história dessa tribo na região de Bauru entre o final do século 19 e o início do século 20.
Pertencentes ao grupo Jê (também conhecido como Tapuia), os caingangues possivelmente vieram do Sul. No estado de São Paulo, sua presença se estendia pelo Vale do Rio Tietê, área que inclui a região de Bauru.
Como nos demais estados, em São Paulo os caingangues dividiam-se em 13 subgrupos, cada qual comandado por um chefe. Só que aqui foram colhidos pelo avanço da fronteira do café. “Eles estavam praticamente nessa rotaâ€, explica Lima.
O movimento muito rápido das frentes pioneiras e a comercialização desenfreada das terras, patrocinada pelo Estado, acabaram por reduzir a população indígena.
“A história dos índios no Brasil é uma história de hostilidade e dizimação. Primeiro pelos decretos régios, que determinavam a escravização dos índios. Segundo pela Lei de Terras, em 1850, a qual apontava como devolutas as terras não pertencentes a particulares e à Igreja. Apesar de terem chegado primeiro, os índios nunca foram reconhecidos como proprietáriosâ€, diz o historiador.
Depois da matança de caingangues delatada por missionários, juízes e advogados e do pedido de intervenção dos empreiteiros que consideravam a população indígena um entrave ao progresso, o Estado enviou uma equipe do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) a Bauru, cujo trabalho era ‘pacificar’ os conflitos.
O SPI, então, reuniu os índios em duas reservas, uma na região de Tupã e outra na de Penápolis. O problema é que essa reunião foi realizada sem conhecimento da estrutura familiar dos caingangues, o que resultou na diminuição da população indígena.
“Depois de muitos anos, eles descobriram que os índios estavam organizados em metades patrilineares e essas em clãs. A junção de membros entre essas metades era considerada incesto, sendo passível de morteâ€, relata Lima.
Com essa descoberta, a divisão foi refeita e foram trazidos terenas do Mato Grosso para que os caingangues pudessem se procriar. Depois de anos de política de “simbiose à forçaâ€, os índios passaram a ser tema uma política federal.
“Até final da década de 70, início dos anos 80, as reservas eram respeitadas. Hoje não há política indígena. A Funai nada representa e não tem força porque o governo não tem uma ética com os índios, apesar de ter como presidente um sociólogo e como primeira-dama uma antropólogaâ€, critica o historiador.
‘Pacificação’ é relatada em 45 livros do SPI
O processo de ‘pacificação’ sofrido pelos índios caingangues no início do século 20 está relatado em 45 volumes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), hoje Fundação Nacional do Índio (Funai).
Os livros, todos manuscritos, encontram-se à disposição para consulta no Centro de Memória Regional da Unesp/RFFSA, localizado no Centro de Bauru. “Estão todos em ótimo estado de conservaçãoâ€, garante o historiador João Francisco Tidei de Lima, coordenador do centro.
No local, pesquisadores de todas as idades também podem encontrar fotografias, mapas e plantas arquitetônicas e de engenharia relacionadas à história da antiga Estrada de Ferro Noroeste, cujo primeiro trecho ligando Bauru a Avaí foi inaugurado em 1906. “Todo o material é reproduzívelâ€, garante Lima.
De acordo com o historiador, o assunto indígena não é dominante entre a população, mas ele fica feliz em constatar a presença de estudantes de ensino fundamental, médio e superior em busca de material de pesquisa.
“Apesar de tida como supersticiosa, a cultura indígena tem estrutura que dá conta do universo e, às vezes, de maneira muito mais rica e profunda que a nossaâ€, sustenta Lima.
Serviço
Centro de Memória Regional da Unesp/RFFSA. Rua Primeiro de Agosto, quadra 1, ao lado da Estação Ferroviária. Horário de funcionamento: de segunda a sexta-feira, das 8h às 11h e das 14h às 17h. Entrada gratuita.