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Vida de pobre


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Além do fosso social que nos separa da maior parte da população, há um oceano de dor e tristeza, completamente desnecessário, conseqüência “natural” ou sub-produto do lucro e da mesquinhez humana, milenarmente travestida de cristianismo. Católico, no Brasil, e protestante, no império, mais ao norte. É a realidade, o dia-a-dia de 120 milhões de miseráveis, pobres e quase pobres, os quais vivem como baratas, comendo as migalhas que sobram daqueles que ainda não deixaram de ser classe média e dos ricos. 600 mil preferiram ser “cucarachas” em solo estadunidense.

Certamente, as migalhas daqui não gorjeiam como as de lá... Apresento-lhes o Sr. Barata e sua família. A mulher dele sofre de epilepsia. Tem cicatrizes provocadas pela água quente que derramou sobre ela durante uma das crises. Uma nordestina seca de corpo como a caatinga que a gerou. O rosto é muito manchado, por haver tomado sol, quando grávida de seus três filhos. A maior é hoje uma moçona, que trabalha, há pouco tempo, como agente de saúde da Prefeitura. O do meio, também, recentemente, arranjou um emprego numa empresa que terceiriza a leitura dos medidores de energia elétrica. A menor, apenas estuda.

Eles moram em um terreno, onde vão se aglomerando os filhos e netos dos proprietários originais, na medida em que vão se casando. Pelo menos não pagam aluguel. O problema é quando alguém bebe mais que pode, e, aí, forma a confusão. Um cunhado dele foi esfaqueado pelo marido da sobrinha e carrega uma cicatriz de meio metro do estômago até lá embaixo. O médico precisou aumentar o buraco, para poder retirar a sujeira espalhada pelo estômago e intestinos. Já esqueceram o fato e, por enquanto, reina a paz naquele condomínio familiar de afro-brasileiros.

Pensando bem, a situação hoje não é tão ruim para eles, como foi poucos anos atrás, quando todos estavam sem trabalhar. Cozinhavam o pouco que tinham com lenha, por falta do dinheiro para o gás. O Sr. Barata vivia de bicos, fazendo qualquer coisa, para ganhar alguns reais. Lavava caixa de água, fazia serviços simples de pedreiro e de pintor, limpeza de terrenos, etc. Sua esposa e o filho, sempre ajudando, quando o tipo de serviço permitia-lhes dar sua contribuição. Uma família unida pela impossibilidade de sobreviver separada. Dá para notar o amor e o respeito existente ali...

Hoje, ao passar, de carro, perto de sua casa, vi-o no botequim de esquina, fui lá bater um papo com ele e também fiscalizar se estava bebendo além do razoável. “Este não é ambiente para um pai de família!...” Repeti baixinho, mais uma vez, como sempre faço ao encontrá-lo ali. Ao sair, as filhas vinham em direção ao bar, provavelmente, para buscá-lo. Informei-as que já tinha tentado... Mas que ele estava sóbrio, sem copo na mão ou garrafa na mesa.

Apenas apreciava um jogo de sinuca. Gosto dele, exceto quando me chama de doutor e, orgulhoso, apresenta-me para seus companheiros, destacando minha profissão, acrescentando que sou rico...

No pouco tempo em que permaneci ali, atualizando-me sobre suas novidades, ele colocava as mãos para os céus e agradecia a Deus pelo emprego que tem há uns seis meses. Mas o preço que tem de pagar ao diabo para mantê-lo é surpreendente. (Interpretação minha...) Trabalha para um feitor de escravos, proprietário de uma empresa que fornece transporte para os funcionários de um dos maiores bancos do País.

Precisamos nos indignar, aguçar nossa sensibilidade e fazer alguma coisa, nem que seja condenar verbalmente ou divulgar situações como esta. Precisamos aproveitar a oportunidade de que um partido dos trabalhadores, apesar de que, unido aos patrões, assume uma parcela significante do poder político do país e buscarmos reformas mais profundas em nossa sociedade como um todo. Mas jamais devemos nos esquecer que a verdadeira mudança começa dentro de cada um de nós.

Por que o amor e a paz, pregados nos púlpitos religiosos, não é capaz de permear toda a sociedade, sendo que a grande maioria afirma estar praticando a lei de Deus? E, por que não, se até os que não tem esta fé, os ateus, céticos e agnósticos, consideram-se éticos e respeitadores de seu semelhante?

Talvez esteja chegando a hora de descobrirmos porque nossos valores individuais são incapazes de construir uma coletividade feliz... (O autor, Heitor Reis, é engenheiro civil, articulista da Agência Brasileira de Notícias)

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