Ser

Um baterista único

Luly Zonta
| Tempo de leitura: 10 min

Foi numa brincadeira de criança, numa espécie de xilofone feito de garrafas, que o garoto Luiz Américo Manaia, o Ralinho, 36 anos, começou a tocar no quintal.

O vizinho músico deu os primeiros toques e, em pouco tempo, já tocava em bandas de garagem.

A primeira bateria foi comprada pelo pai, que sempre lhe deu a maior força. Hoje, ele tem uma bateria de 1964, que trata como relíquia. Segundo o instrumentista, ela tem um som perfeito para jazz e bossa e mesmo com todo o ciúme e cuidado que tem por ela é capaz de emprestá-la para um amigo.

Entre os ídolos, o baterista Edson Machado, que foi o inventor da maneira de tocar o jazz-brasil, ocupa a primeira posição, mesmo sendo contemporâneo de Elvin Jones e Buddy Rich. Entre os profissionais de hoje, o bauruense admira o estilo, a técnica e a modernidade de Marco Costa, que atualmente toca com a Maria Rita, e Márcio Bahia, o baterista de Hermeto Paschoal.

Como Hermeto, Ralinho também adora tirar sons em objetos inusitados, seja nas panelas, onde literalmente cozinha durante a semana, enquanto a esposa Claudia trabalha, ou até mesmo nos mocassins.

Revela que ouve música boa 24 horas por dia. E até nos momentos em que precisa ser profissional e caprichar no trabalho comercial, aproveita para dar tempero, com batidas e swing peculiares

Manaia, que está na noite há mais de 20 anos, afirma que o mercado passou por um momento de ostracismo, mas que aos poucos as coisas estão clareando, mas a concorrência ainda é difícil e desleal. Mas como ele mesmo diz, “está na parada e vai tocar até morrer.”

Esta semana, Ralinho interrompeu um ensaio para conversar com o JC, os melhores momentos estão na seqüência:

Jornal da Cidade – Você era um garoto que amava mais os Beatles ou os Rolling Stones?

Luiz Américo “Ralinho” Manaia – Acho que nenhum dos dois.

JC – Mas a bateria veio parar na sua vida como?

Ralinho – Veio parar de uma forma bem engraçada. Eu tinha uns 10, 11 anos... e na aula de educação artística eu aprendi a amarrar uma corda e a colocar garrafas com água. Eu morava no Centro, na casa da minha mãe, e montei a minha corda nos ganchos de colocar rede e ficava tocando. Ao lado de casa, alugaram um espaço para uma banda, a Século XX, ensaiar. Um dia o Paulinho Batera me escutou tocando aquelas garrafas, subiu no portão de casa e me disse: “Ô! Não quer aprender a tocar bateria”... (risos) E com essa idade, eu comecei a ter aula ali. Nessa época eu já usava prótese. Eu amputei com 8 anos.

JC – Foi paralisia?

Ralinho – Eu nasci com uma displasia na perna esquerda. Fiz várias cirurgias na tentativa de corrigir alguma coisa, mas ela estava muito torta. Não servia, estava estorvando até. Aí amputei com 8 anos, coloquei prótese e me adaptei com o chimbal. Usei a prótese por uns cinco anos. Há 10, 12 anos eu fiz outra cirurgia, porque essa displasia se tornou um sarcoma, veio como tumor e inviabilizou o uso da prótese. Na época eu ainda tinha o coto e com o coto eu fiz uma adaptação. Pus uma haste no pedal que vinha até a altura do coto e com uma base que se encaixava e empurrava o pedal. Toquei dessa maneira por uns três anos. Depois, infelizmente, eu tive que fazer a reamputação, cortar o coto fora. Falei: “Agora danou-se! Inviabilizou mesmo.” Era o lançamento do CD da Bauru Jazz Band. Foi uma cirurgia forte mesmo. Mas vamos lá. Vamos pensar, vamos pensar, vamos pensar... E daquela adaptação que tinha feito para tocar com o coto, eu tirei a base, subi mais um cano até o ombro e encaixei uma alça.

JC – Você mesmo foi o engenheiro da obra?

Ralinho – Eu mesmo fui o engenheiro. Ainda não patenteei, mas preciso...

JC – Também acho... Você deve ser o único no mundo que faz isso.

Ralinho – Acho que sim. Eu tive que criar uma técnica para separar a mão esquerda, do ombro esquerdo. Eu tinha que fazer duas coisas no mesmo membro. Custou, custou, custou e eu consegui. Hoje eu toco tranqüilo, não afeta em nada. Foi essa a minha história, basicamente. E já faz nove anos que toco assim.

JC – Você tem noção de quantas horas de bateria você já tocou na vida?

Ralinho – De 79 a 81, eu estudei. Depois comecei com umas bandinhas de garagem, tocando rock’n’roll. Em 85, 86, quando abriu o Scaramouche, que era de um pessoal amigo meu, fui contratado para ser o baterista da casa. Eu tocava com todo mundo e ali, foi minha grande escola. Ali eu conheci todos os cafajestes da noite (risos). Foi uma escola bacana. Nessa época entrei para uma banda de baile chamada Estilo A, em 86. Eu fiz baile até 90, viajei muito, até cansar de baile. Em 91, troquei de lugar com o André Villela, que tocava no Contrabando Country, estava cansado de baile e os shows do Contrabando eram mais tranqüilos, fiquei com eles até a banda terminar. Em 93, montamos o Sindicato do Jazz, que era onde a gente podia tocar o que a gente gostava. A gente fundou sem pretensões, apenas para tocar jazz... Mas a coisa foi virando, pegando e a gente foi levando essa bandeira, até que pegou. Em 94 veio a Bauru Jazz Band, uma grande banda, formada pelo maestro Badê. A gente produziu um CD com muitas horas de ensaio. De uns tempos para cá, a Bauru Jazz Band parou e estamos com o Standard Jazz, também com o Badê, gravamos um CD duplo com 28 músicas de composição dele. Estudar, eu estudo pelo menos quatro horas por dia.

JC – A vida inteira foi assim? Você sempre viveu de música?

Ralinho – Foi assim sempre. Até na época em que estudava, terminei o colegial e até passei na faculdade...

JC – De engenharia mecânica?

Ralinho – Não, de processamento de dados. Aqui na Universidade de Bauru, a UB. Mas a música puxou, puxou e foi mais forte que tudo e nunca mais saí da música. A gente sofre um pouco por querer tocar música boa. É uma luta.

JC – Hoje a sua vida é o sindicato ou se pedir para tocar comigo você vai tocar? Como funciona essa logística musical?

Ralinho – Sempre tive meus trabalhos paralelos. Senão, ninguém segura a onda monetária. Toco com cantor, com cantora, faço o Segura Nega, que é uma banda de samba-rock. A gente grava algumas coisas... Mas se a gente pudesse viver só de jazz e rock e músicas que a gente gosta... Mas é difícil. A gente não deixa de fazer essa música boa nunca. Isso é o grande lance. O Sindicato tem essa meta, mas por fora...

JC – Essa coisa de jazz e de bossa veio de berço? O número de vinis na estante denunciam...

Ralinho – Não e sim ao mesmo tempo. Essas caixas (aponta para duas caixas de som antigas ao lado da estante) são originais. Eu nasci e elas já existiam em casa, faziam parte de uma vitrola. A gente tinha vários vinis. A minha mãe sempre gostou de música, meu pai sempre gostou de música... Pode ser que realmente tenha sido o começo de tudo. Eu tinha um irmão mais velho, que na época curtia rock progressivo, aquelas coisas dos anos 70. Começou tudo aí. Mas a grande virada foi quando eu comecei a tocar bateria... Hoje, gosto muito de samba-jazz e jazz dos anos 60.

JC – Nesse processo todo de tocar e ter que vencer as suas dificuldades. A bateria foi a sua grande fisioterapeuta?

Ralinho – Foi. Foi porque eu me sinto mal se não tocar. Se ficar dois, três dias sem tocar, não me sinto completo. Eu sempre tive que vencer barreiras também. Já pensou você amputar uma perna com 8 anos?

JC –Você chegou a correr na rua e jogar bola como qualquer criança? Como foi isso?

Ralinho – Eu sempre tive que vencer todas essas barreiras. Nunca a deficiência me impediu de fazer nada, nada mesmo. Eu jogava bola, jogava basquete, andava de bicicleta. Naquela época eram umas próteses pesadas, de madeira...

JC – E você sempre foi franzininho?

Ralinho – Ainda bem, porque as próteses da época eram bem pesadas. Hoje são bem modernas, de titânio. Você vê atletas correndo com prótese. Mas naquela época eu já fazia tudo o que esses caras fazem, quase 30 anos atrás. Bicicleta, bola... Andava de bicicleta sem prótese também, só com uma perna, rodava Bauru, ia para o Luso todo dia. Eu sempre venci, venci, venci. Corria atrás e nunca falava não dá, sempre dava. Eu inventava um jeito de fazer. Se não jogava na linha, ia para o gol. Mas jogava.

JC – E tocar? Como se chega num bar dizendo que vai tocar bateria com uma perna só? Já passou por alguma situação complicada por conta disso?

Ralinho – (risos) É... Tem gente que olha e não acredita. O pedal esquerdo... Tanto é que eu já sai na revista Batera. (Levanta-se para pegar a revista com uma agilidade impressionante e com passo inacreditável). Quando eu tirei o coto, eu fiz uma prótese de titânio, mas eu fico muito duro, meio lento e andando há quase 30 anos de muleta, sou muito mais ágil com uma muleta só do que com prótese. Mas continuando a história de tocar bateria, eu fiz essas adaptações num torneiro mecânico perto de casa. Eu fui falando para ele e ele ia fazendo. Um dia eu encomendei uma bateria de um cara, o “seo” Oderi, que fabrica em Campinas. Quando fui buscar, ele não acreditava como eu tocava. Eu mostrei e ele viu a minha peça, que era bem rudimentar e resolveu aperfeiçoá-la e fez regulagens.

JC – O apelido de Ralo, Ralinho vem de onde?

Ralinho – Quando eu tocava no Scaramouche, eu tinha uma moto. Outra coisa, que não podia e fazia. E naquela de carregar bateria, eu vivia caindo, vivia ralado, entendeu? O João e o Celso viviam me chamando para dar um ralo, aquela coisa de adolescente de querer empinar, fazer todas aquelas coisas que não podia. Eu caia e ralava mesmo. Aí ficou Ralo, Ralo e por conta do meu porte físico (risos) ficou Ralinho. Muita gente não sabe que sou Luiz Américo Manaia.

JC – Você chegou a viajar por outros instrumentos percussivos?

Ralinho – Tentei, mas não deu certo. Arranjo uma tumbadora, um bongô, mas não virou. Não sou percussionista, sou baterista.

JC – Então me conta o que um baterista sente durante um solo?

Ralinho – A bateria é um instrumento primitivo, um tambor. Se você soltar uma criança numa sala com baixo, violão, ela vai direto na bateria, é uma coisa instintiva. Então, a hora do solo da bateria é uma coisa mesmo que pára, pára mais que os outros instrumentos. As pessoas param para ver. Não sei se é por essa força primitiva do tambor. Agora, falando do baterista, solar a bateria é você pegar a energia do seu corpo todo, que é uma energia muito grande na hora, você está com a adrenalina a mil, colocar a técnica junto, dosar e é essa a dosagem certa, que o jazz. É unir a energia e a técnica e não só fazer barulho. Lembrar da técnica a cada improviso e colocar todo o sentimento. Isso é demais e eu adoro improvisar. E gosto do jazz porque ele me dá a liberdade de tocar música boa sob todos os sentidos.

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