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Um certo sentimento íntimo


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Ainda recentemente, o professor de Literatura da Universidade de Princeton Michel Wood referiu-se a Machado de Assis como “alguém não muito abaixo de Flaubert, Henry James, Tchecov e outros dos seus contemporâneos”. Tivesse ele escrito em língua inglesa, provavelmente sua obra seria ainda muito mais reconhecida mundialmente. O problema é que esse foi o mal menor na vida de Joaquim Maria Machado de Assis. Nascido no Rio de Janeiro, no Morro do Livramento, em 1839, era preto, pobre, gago, epilético e órfão. Criado pela madrasta, freqüentou somente o primário em uma escola pública e aprendeu francês e latim com um padre, amigo da família. Padecia de todos os sete preconceitos vigentes naquela sociedade que escravizava negros, prezava a retórica, ainda que vazia, e considerava certas doenças, como as nervosas, castigos que os descendentes pagavam por pecados cometidos contra seus ancestrais. Por último, nas muitas brumas que cobrem sua biografia, diz-se que Carolina, a esposa, casou-se com ele porque tinha comido a merenda antes do recreio em Portugal. Por castigo, os parentes a haviam trazido para o Brasil. Por pirraça, ela teria se aproximado de um mulato. Mas daí surgiu o amor, que tudo mudou nas duas existências até o dia em que ele se postou “ao pé do leito derradeiro” para suas homenagens à esposa morta com um dos mais belos sonetos da língua portuguesa.

Ser estéril era outro castigo, mas tudo indica que foi opção dos dois não terem filhos. Como evitaram, é segredo que levaram para o túmulo. A Igreja não gosta de casais sem filhos. A função essencial do casamento é procriar, diz a doutrina. A missão essencial da mulher é ser mãe, dizem os biólogos e antropólogos.

O que deve ter ajudado muito o desenvolvimento intelectual de Machado de Assis foi a profissão de tipógrafo que lhe possibilitou muitas leituras. Não freqüentou universidade e nem isso seria possível, a não ser que pudesse morar em Coimbra, para onde iam os filhos das famílias ricas brasileiras. O Brasil não tinha cursos superiores naquela época, embora já fosse uma República de bacharéis. Talvez o Brasil ainda seja o país onde a falta de diploma gere preconceitos porque valeria mais que o conhecimento, aos olhos da nossa sociedade.

É interessante acentuar que Machado de Assis jamais se valeu da pobreza como álibi – nem para si nem para qualquer dos seus personagens. Em “Helena”, que a gente lia obrigatoriamente no ginásio, a personagem-título é de origem pobre, mas isso não a redime dos pecados da ambição e da falta de escrúpulos para vencer na vida a qualquer preço. Machado não move a pena, uma linha que seja, para lhe atenuar as faltas: a morte de Helena ao fim do romance, é a única redenção cabível.

Muitos críticos literários dizem que Machado de Assis é um ficcionista do mundo burguês, da aldeia carioca e de seus dramas íntimos. Em outras palavras, um simples expectador da sociedade do seu tempo. Demasiadamente passivo diante da miséria do povo sem jamais ter comprometido sua pena em favor dos pobres. Teria se esquecido das origens. Mas, se ainda vivesse perceberia que o Brasil, nesse aspecto, pouco mudou. Hoje temos 40 milhões de excluídos, o acesso à escola, mesmo primária, ainda é difícil para 8 milhões de crianças que trabalham. Quantos talentos como os de Machado de Assis se perdem todos os anos porque não tiveram a sorte de encontrar uma mão amiga, como a do padre, que lhe ensinou erudições...

Parece que antevendo essa crítica, Machado já se defendia em vida. O sentimento de brasilidade é algo íntimo. E se é íntimo, não há porque andar atrás de definições – deixou escrito. A estética literária, para ele, contém a ética que conduz o homem a melhorar o mundo, sem a necessidade de se recorrer à mesquinharia moral ou ideológica das conceituações definitivas. Dito de maneira mais simples: para ajudar na construção de um mundo melhor não é necessário ter carteirinha de militante de esquerda.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC

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