Lalai. Este não é apenas o nome da famosa confeitaria que foi referência de inovação e requinte nos anos 40, 50 e 60 em Bauru. É também o nome de um dos principais ícones de vanguarda da época: Maria de Lourdes Pompeo, a Lalai, apelido dado pelo avô na infância.
Nascida em Campinas em dezembro de 1919, ela veio para a Bauru aos 21 anos e ao lado e do pai, a irmã e o cunhado, comandou um dos principais “points” da juventude. “As moças e rapazes freqüentavam muito a confeitaria e ficavam conversando. Deu muito casamento por lá”, conta ela, em entrevista concedida na última sexta-feira ao Jornal da Cidade.
Gentil e bem-humorada - características que definem sua personalidade - ela atendeu a equipe de reportagem em sua casa, pouco antes de pegar o carro e sair às compras semanais. Dirigir, aliás, sempre foi uma das paixões de Lalai. “Fui a primeira mulher a dirigir em Bauru. Tirei carta em 1938, em São Paulo, e dirijo até hoje, com 86 anos”, orgulha-se ela.
Sem medo de ousar ou desafiar os costumes da época, Lalai fumava e usava calças compridas, comportamento raro entre as moças. Assim como o cardápio da confeitaria, Lalai relembra, entre outros assuntos, doces lembranças do período conhecido como “anos dourados”. Confira os melhores trechos a seguir.
Jornal da Cidade - Como surgiu a confeitaria Lalai?
Maria de Lourdes Pompeo, a Lalai – Nós abrimos em abril de 1946. Papai tinha um carro-restaurante da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, há muitos anos. Viemos de São Paulo para Bauru e percebemos que a cidade não tinha nenhuma confeitaria. Aí resolvemos abrir a Lalai. Eu, papai e meu cunhado éramos sócios e tomávamos conta da confeitaria. Minha irmã cuidava da parte de cozinha e eu, da parte comercial. Nós fazíamos serviços de buffet e casamentos na região toda: Pederneiras Lins, Araçatuba, Birigüi, entre outras cidades. Fizemos também banquetes para políticos e também oferecíamos serviços para os restaurantes do Automóvel Club, da Hípica e do Aeroclube em Bauru.
JC – Para muitos, a Lalai era considerado um dos estabelecimentos mais elegantes do Interior Paulista, caracterizado por um cardápio requintado. Por que?
Lalai – A confeitaria foi bem montada, toda de aço inoxidável e vitrines bonitas. O pessoal ficava ali, nós fazíamos doces e tínhamos bons confeiteiros. Tínhamos um empregado que foi fazer um estudo em Campinas para preparar os bombons. E a turma toda gostava muito.
JC - Então as especialidades eram os doces?
Lalai - É. Nós começamos com chá, pensamos em montar uma casa de chás. Experimentamos por uma semana e vimos que aquilo não era interessante. Aí abrimos a confeitaria.
JC – Quem criava as receitas?
Lalai – A maioria era minha irmã, a Sofia, que gosta muito de cozinhar. Hoje ela está com 88 anos e ainda faz docinhos. Eu não entendo nada. A turma vem falar comigo, mas eu não sei cozinhar porque nunca tomei prática.
JC – Mas o forte da senhora era receber e administrar.
Lalai - É. E nós recebíamos muito os professores da faculdade, todos almoçavam lá quando vinham dar aula aqui.
JC – Outra marca registrada da confeitaria era o bom atendimento oferecido aos fregueses...
Lalai – É verdade. O Zé do Skinão trabalhou durante cerca de 30 anos conosco, desde moço.
JC – Por que a senhora é conhecida como Lalai?
Lalai – Meu nome é Maria de Lourdes, mas meu avô, que era italiano, colocou esse apelido, não sei porquê. Aí ficou, nem eu lembro que meu nome é Maria de Lourdes.
JC – Como foi que seu apelido deu nome à confeitaria ?
Lalai - O João Maringoni era nosso advogado na época. Quando abrimos a confeitaria fomos conversar com ele porque estávamos procurando um nome e ver o que ele achava. Foi quando o João falou: “Não precisa procurar, vocês coloquem Lalai.” Nós não estávamos pensando nisso e resolvemos fazer um concurso popular. As pessoas deram diversos palpites e ganhou o nome Lalai. Era um nome fácil.
JC – Realmente é marcante, tanto é que Lalai é o nome do restaurante comandado por seu filho e sua nora...
Lalai - Pois é, isso é engraçado. Eu não pensei que meu filho iria seguir essa área. Ele estudou nos Estados Unidos e depois que começou a namorar a Elaine, os dois resolveram abrir um restaurante. Os dois trabalham bastante e estão indo bem.
JC - Há semelhanças entre o restaurante e a confeitaria Lalai?
Lalai - Não há muitas porque agora é só restaurante. Antigamente nós tínhamos a parte de confeitaria e de buffet, era mais essas coisas. Naquela época, em Bauru, não se conhecia ice cream, milk shake, sundae. Ninguém sabia o que era isso. Uma vez, logo que eu mudei de São Paulo para Bauru, um amigo da Capital veio passar um dia conosco e não havia uma confeitaria para ir, como estávamos acostumados em São Paulo. Então, fomos ao Bar da Estação e meu amigo pediu um milk shake e o homem indicou onde ficava o sanitário. Isso foi em 1945, é impressionante como Bauru cresceu de lá para cá.
JC – A Lalai foi considerada um dos grandes pontos de encontro da juventude dos anos 40 a 60?
Lalai – Sim. Quando não havia a confeitaria Lalai, os jovens se concentravam na rua 1.º de Agosto. Depois que nós abrimos a Lalai, os jovens praticavam footing (passeios a pé nos quais rapazes e moças se viam e muitas vezes se paqueravam) na Batista de Carvalho. Lá era um ponto muito bom porque havia começado a Faculdade de Direito e turmas de estudantes e professores iam para a confeitaria. Havia um movimento simpático de moças e moços. Era uma época muito boa.
JC – O footing era uma das principais formas de lazer da época?
Lalai – Acho que sim porque antigamente era uma coisa que os jovens gostavam. As moças e rapazes freqüentavam muito a confeitaria e ficavam conversando. Deu muito casamento por lá (risos). Alguns rapazes diziam para mim: “Lalai, eu era celibatário, não queria casar, agora já estou até noivo”. Houve muito movimento de moças e rapazes e por isso surgiam casamentos, até mesmo entre os empregados. Nós tínhamos a padaria central e a confeitaria Lalai, onde também surgiram muitos casamentos.
JC – Além de ser um “point”, a confeitaria Lalai foi um marco na história da cidade. A que a senhora credita esse sucesso?
Lalai – Fizemos uma coisa muito bem feita na confeitaria, desde o material que nós usávamos na época. Os talheres eram todos de prata, os copos eram de cristal, tudo com o nome Lalai, mas como as pessoas levavam tudo como souvenir nós não fizemos mais com o nome porque não havia coisa que as pessoas não levavam como lembrança.
JC - Qual era o público que freqüentava a confeitaria?
Lalai – Era diversificada. Haviam artistas, políticos, poetas. Outro dia teve até um senhor que escreveu um artigo muito interessante sobre a confeitaria Lalai dizendo que, quando era menino, ficava encantando de ver a confeitaria. Ficava na porta olhando todo o pessoal, mas não tinha coragem de entrar lá. Mas depois, quando chegaram uns amigos dele que vieram de fora, ele foi tomar um sorvete na Lalai e ficou contente de poder entrar na confeitaria. Isso é uma coisa bonita. Hoje, quando vou a um banco, muitas vezes encontro um senhor que vem e diz: “Lalai, que saudade dos tempos da Lalai. Como era bom.” E sabe, é muito gostoso ouvir isso.
JC - E a senhora também tem saudades da época?
Lalai - Eu tenho muitas saudades.
JC – Por que?
Lalai - Era diferente de hoje, completamente diferente. Os namoros eram diferentes. Era bonito ver o amor entre os casais. Muitos casamentos começaram lá.
JC – Além dos casamentos, há outro fato marcante ou lembrança que a senhora guarda da época da confeitaria?
Lalai - Nós fazíamos a preparação para o Carnaval lá. O pessoal começava a brincadeira de confete e serpentina e depois na Lalai e depois ia para os clubes. Era uma prévia e as pessoas adoravam.
JC - O que a Lalai representava para a senhora?
Lalai - Não sei, eu gostava muito, era um ambiente gostoso de estar. Era uma época muito boa, não só para mim como para os freqüentadores. Todo mundo gostava.
JC – A confeitaria ganhou destaque pela sua decoração arrojada e inovadora. Esse visual era reflexo de sua personalidade?
Lalai - Eu morei em São Paulo, estudei no Mackenzie, e sempre ajudei o papai, fazia serviço de banco e cuidava da parte comercial. Eu sou alegre e gostava de dançar. Minha irmã já era mais quieta e eu gostava de tudo. Minha mãe falava que eu era “arroz de festa”, tudo quanto era evento eu ia. Ia aos bailes de Carnaval e dançava de domingo a terça-feira. Minha mãe “ficava por conta”, mas eu dançava, gostava de brincar. Me fantasiei de negrinha duas vezes, participava de bloco e ia para o Tênis e para o Automóvel Clube. Era uma época muito gostosa.
JC – Para muitas pessoas a senhora é considerada um ícone de vanguarda...
Lalai – Eu vim de São Paulo e aos 19, 20 anos, eu fumava, coisa que não era comum entre as moças de Bauru. Algumas fumavam escondido no toilete, mas quando eu ia aos clubes, fumava. Tomava meus aperitivos, como cuba libre. Na época todo mundo reparava.
JC - A senhora desafiou os costumes da época?
Lalai - Pois é. Eu fumava na minha casa, o meu pai também. Mas felizmente há mais de 20 anos deixei o cigarro.
JC – O fato da senhora ser uma das primeiras mulheres a dirigir também causou impacto na sociedade de Bauru?
Lalai - Eu fui a primeira mulher a dirigir em Bauru. A carta de habilitação mais antiga era a minha. Tirei carta em 1938, em São Paulo, há mais de 60 anos. E dirijo até hoje, com 86 anos. Além disso, sempre gostei de automóvel, desde pequena.
JC – Qual era seu carro preferido?
Lalai - Naquele tempo eu gostava muito do Kaiser, era um tipo bonito de carro.
JC - A senhora também usava calça comprida num período em que as meninas usavam saia?
Lalai - Usava. Naquele tempo isso não era muito comum como hoje. Mas eu andava muito, guiava até a padaria, às vezes dirigia até caminhonete e furgão e a calça comprida era muito mais prática.
JC - Qual era o papel da mulher nos anos 50 e 60?
Lalai – A mulher era mais doméstica, ficava em casa, não tinha muito papel. Hoje as mulheres trabalham e muitas empresas são comandadas por elas. Eu nunca deixei de trabalhar. Depois da confeitaria, tivemos um posto de gasolina e também fui funcionária durante 13 anos do laboratório farmacêutico Santisa, que faz parte da Santa Casa e fechou em 2003.
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Perfil
Nome completo: Maria de Lourdes Pompeu
Data de nascimento: 08/12/1919
Naturalidade: Campinas, São Paulo
Hobby: Dirigir
Que livro está lendo: “Yolanda” e “Roberto & Lilly”
Cor preferida: Vermelho, preto, e azul-marinho
Time do coração: Palmeiras e Ponte Preta
Para quem daria nota 10:Lilly Marinho, Alcides Franciscato, Osires Silva e Denise Fronza
Para quem daria nota zero: Melhor não falar