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Ex-interno da Febem, doutor pela USP defende preservação da família

Thatiza Curuci
| Tempo de leitura: 9 min

A experiência de vida do professor Roberto da Silva, 47 anos, doutor em pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP), poderia ser transformada em um livro. E foi. As páginas de ‘Os Filhos do Governo’ (Editora Ática) relembram a época da infância e adolescência em que ele e outros 1.500 meninos passaram em um abrigo da Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febem), em Sorocaba e São Paulo. Ele foi separado de sua mãe e três irmãos quando tinha apenas 2 anos e viveu no abrigo até os 17 anos. Ele fez parte da primeira geração de crianças colocadas sob a tutela do Estado. Isso porque quando se instalou no regime militar, os abrigos e orfanatos passaram a ser gerenciados pelo Estado.

Quando saiu da Febem, perdeu os dois empregos que tinha, foi despejado da pensão em que se hospedava e viveu anos na rua. Tentando sobreviver, acabou na marginalidade. Preso no Carandiru, em São Paulo, resolveu reagir ao invés de cruzar os braços. Durante os sete anos que passou na Casa de Detenção, leu sobre advocacia e ajudou outros detentos e a si mesmo na defesa de seus direitos. Interessado em trabalhos de Organizações Não-Governamentais (ONG) preocupadas com os direitos humanos, quando conseguiu liberdade, começou a trabalhar na área.

Hoje, o pedagogo é também consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e integrante do Comitê Nacional de Reordenamento de Abrigo. Defende que o governo deveria preocupa-se mais com a manutenção da família, ao invés de separá-las nos casos de falta de estrutura. Na sua opinião, a grande maioria dos jovens que vive em abrigos poderia estar com seus familiares.

O professor chegou ontem e Bauru e ficará na cidade até amanhã. Ontem, ministrou palestra aberta à comunidade na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje, participará de encontro e discussão na Anfiteatro da Universidade do Sagrado Coração (USC), às 8h.

Ontem de manhã, conversou com a reportagem do Jornal da Cidade e contou sua história de vida.

Jornal da Cidade – Como o senhor foi parar na Febem?

Roberto da Silva – No meu caso específico, o que houve foi um erro judicial. Minha família morava em São José dos Campos quando meu pai deixou minha mãe com quatro filhos para criar. Ela foi à Capital em busca de um serviço de apoio à família que existia no Juizado de Menores. Mas, até que fosse atendida, passamos quatro meses morando na rua. Finalmente, quando foi atendida, os técnicos achavam que ela estava tão maltratada e as crianças tão maltrapilhas que determinaram a internação dela em um hospital psiquiátrico e a internação das crianças em abrigos públicos.

JC – O senhor pôde pelo menos ficar junto com os irmãos?

Roberto – Não, todos ficamos separados. Como a regra de abrigos que ainda de certa forma prevalece hoje é separar as crianças por gênero e idade, os quatro foram separados. Cada um foi para uma cidade diferente e eu fiquei a princípio em Sorocaba. Recebemos uma sentença de abandono, com recomendação de internação até os 18 anos diante da impossibilidade que minha mãe tinha de visitar quatro filhos em quatro cidades diferentes. Assim, quatro irmãos cresceram sem saber que tinham uma família.

JC – Quando o senhor descobriu informações sobre sua família?

Roberto – Só por volta dos 14 anos de idade, quando fui designado para trabalhar no gabinete de juiz de menores em São Paulo. Eu tive a curiosidade de mexer nos arquivos e achei umas fichas e prontuários no meu nome. Só aí descobri que eu tinha uma família e que os técnicos da Febem e do judiciário tinham essa informação, mas simplesmente nos ocultavam.

JC - Até qual idade ficou em abrigos?

Roberto – Até os 17 anos. Meus irmãos ficaram mais tempo, até 20 e 21 anos.

JC - Como era o ambiente dentro do abrigo?

Roberto – Era muito grande. Em Sorocaba, por exemplo, chegava a ter 1.500 meninos. As relações que tínhamos eram apenas com funcionários, nada de relações familiares ou com pessoas da sociedade. A única vantagem disso é que vivíamos em um propriedade muito grande. O fato de poder ter contato com a terra, criar animais e muito espaço verde, fazia com que as crianças, de certa forma, tivessem uma vida sadia. Mas, por outro lado, tinha o sacrifício da maioria dessas crianças não ter nenhuma convivência com a família.

JC – Aos 12 anos, foi para um abrigo em São Paulo e lá conviveu com menores infratores, como foi essa mudança?

Roberto – A diferença foi mudar do mato para o asfalto. Foi uma diferença muito grande. No meio rural, a gente aprontava muitas brincadeiras. Na cidade, encontrávamos meninos envolvidos no crime. Utilizavam armas para roubar, usavam drogas e se embebedavam. A violência era mais fácil e gratuita.

JC - E quando saiu da Febem, como foi?

Roberto – Fui desabrigado aos 17 anos e meio porque mantinha dois empregos fora. Trabalhava no Juizado de Menores e como office-boy em um escritório de engenharia. Na avaliação dos técnicos, eles achavam que com dois salários já era possível eu me sustentar. Só que a gente sempre viveu em liberdade. Eu denominei meu livro de ‘Os Filhos do Governo’ exatamente porque era essa a impressão que a gente tinha: o Estado era nosso pai e a Febem era nossa mãe. Eles que cuidavam da gente e não precisávamos nos preocupar com nada.

JC – Quando foi morar sozinho, o que aconteceu?

Roberto – Fui morar em uma pensão, como fazia a maioria dos meninos. Mas, em menos de três meses ficou evidente que eu não sabia viver em liberdade. Não sabia administrar dinheiro e organizar as despesas. Perdi a pensão que morava por atraso nos pagamentos. A dona da pensão confiscou todas as minhas coisas. Tive que sair da escola porque não dava conta de trabalhar em dois lugares e estudar. Mais tarde, perdi os empregos também.

JC – Então, perdeu tudo que tinha?

Roberto – Sim, os próximos anos eu morei na rua. Me tornei infrator depois que saí da Febem e não antes (risos). Fui desabrigado na mesma condição de abandono em que fui abrigado. Então, se quando criança, tinha o risco de morrer de desnutrição e de abandono, depois, quando saí da Febem tive que aprender a sobreviver da delinqüência.

JC - Como foi a experiência de voltar para as ruas?

Roberto - Conheci as pessoas da rua e comecei a me enturmar. Vivendo na rua, tem que, de alguma forma comer, se vestir, preservar o mínimo de dignidade. Tudo que se faz na rua é passível de ser caracterizado como crime. Nesse período, talvez eu tenha somado mais de 60 passagens por delegacias. Mas ainda tinha cara de menino e a polícia me dava um esculacho e me mandava embora. Até que chegou um momento em que eu não consegui mais passar por menor de idade. Então, fui pela primeira vez para uma casa de detenção, fiquei quatro meses, saí e voltei para as ruas. Fui uma segunda vez, fiquei seis meses e voltei para as ruas novamente. Quando voltei pela terceira vez, de tudo que eu havia assinado anteriormente com nomes diferentes, fui para a prisão com 36 anos de detenção.

JC - Por quais crimes o senhor respondeu?

Roberto – Crime de querer viver. Crime de ter que comer, ter que entrar em uma casa para dormir, pegar uma roupa no varal de outra pessoa. Com 36 anos de pena, achava que teria que passar o resto da vida dentro do Carandiru. Tinha que encontrar um meio de viver dentro da prisão.

JC – Como foi que resolveu estudar as leis do sistema penal?

Roberto – Foi justamente ao conhecer as histórias desses meninos que comecei a tentar entender como e porquê a sociedade aceita e legitima criar sistemas de exclusão social, condenando algumas pessoas a viver uma vida de miséria. Li muito dentro da prisão. Depois, comecei a denunciar publicamente situações de injustiça e abuso de poder, o que fez com que aprendesse um pouco sobre legislação penal e começasse a fazer a defesa desses meninos diante da justiça. Então, a medida que eu exercitava isso, aprendia como lidar com a justiça e consegui reduzir minhas próprias penas e a de outros meninos.

JC - Quando saiu da prisão? Qual foi o rumo que o senhor deu a sua vida?

Roberto – Antes mesmo de sair da prisão comecei a organizar um tipo de ação coletiva para os presos brigarem por seus direitos. Também tive muito contato com entidades fora da prisão. Foi o suporte que tive quando saí, aos 27 anos. Depois, tive a consciência mais clara de que eu não poderia mais voltar à prisão.

JC – Porque tinha esses sentimento de que não poderia mais voltar à prisão?

Roberto – Porque sabia que, se voltasse, não sairia mais de lá. Tinha muita gente dentro da prisão descontente com o que fazia. Além disso, outros iriam utilizar isso para desacreditar em tudo que havia feito. Me envolvi cada vez mais com os direitos humanos em São Paulo, Bahia e Minas Gerais. No Mato Grosso, voltei a estudar. Fiz supletivo para terminar o primeiro e segundo graus. Prestei vestibular na Universidade Federal do Mato Grosso e fiz pedagogia. Durante o curso, estava elaborando uma proposta de voltar a São Paulo e retomar o que havia deixado interrompido. Voltei através do programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo (USP). O projeto de pesquisa foi retomar a investigação sobre a primeira geração de crianças de abrigos cm quem eu vivi.

JC – Qual a diferença da Febem de hoje e aquela do seu tempo?

Roberto – A diferença básica é que atualmente a Febem não se ocupa mais dessa área de carentes abandonados. Foi terceirizada e ficou a cargo da sociedade civil essa responsabilidade e a Febem ficou apenas com os infratores. Mas tem problemas que ainda permanecem.

JC – Quais são os problemas que ainda permanecem nos abrigos?

Roberto – Abrigos que ainda separam grupos de irmãos. Abrigos que têm as crianças como reféns porque é em função da permanência das crianças que eles recebem recursos. Juízes que não fazem uma avaliação criteriosa da condição da família e da criança e determinam abrigamento a torto e a direito. Esses erros permanecem. O principal deles é a cultura de violência que persiste dentro das instituições.

JC – O que poderia ser mudado pelo governo dentro dos abrigos?

Roberto - Uma delas é o reordenamento institucional. De certa forma, fazer com que esses abrigos abandonem velhas práticas e se reestruturem dentro dos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente. Temos metas claras que serão discutidas com os dirigentes dos abrigos da região. A maioria das crianças que está hoje nos abrigos deveria estar em suas casas, com suas famílias. A questão é de fortalecer a estrutura familiar e criar estratégias para as mães conseguirem se manter com seus filhos.

JC – O senhor sabe onde estão seus irmãos e sua mãe?

Roberto – Isso foi parte de meu trabalho de mestrado. Achei meus irmãos e outros 60 grupos de irmãos separados nas mesmas circunstâncias. Só não consegui localizar minha mãe porque, supostamente, já faleceu e meu irmão mais velho que foi adotado por uma família italiana.

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