Dona Lucinha, cozinheira e pesquisadora da nossa culinária, gosta de falar do quitute começando lá de longe, do passado colonial, evocando sempre o encontro das culturas do índio, do negro e do europeu.
O estilo brasileiro, ela diz, traz influências dos primeiros doces produzidos por aqui, feitos a partir de melado de cana e frutas nativas.
Num segundo momento, quando os colonizadores trouxeram suas famílias, é que o reinado dos doces de ovos e de leite se estabeleceu.
O doce de leite “primitivo” foi elaborado a partir de leite e melado de cana com uma dupla finalidade: comprovar a habilidade das cozinheiras (escravas) e conservar o leite. E foi o alto teor de açúcar utilizado para preservar alguns alimentos que fez com que o queijo entrasse nessa história: ele passou a ser servido junto à sobremesa para cortar o excesso de doçura.
Dona Lucinha diz que o doce de leite da fazenda é preparado na proporção de mais ou menos 1 para 10, “sempre no vai e vem”. A seguir, seu doce de leite, pela tradição oral.
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O tradicional
“Para 10 litros de leite eu costumo usar 900 gramas de açúcar, mas com 1 quilo também fica bom. Coe o leite muito bem e leve ao tacho de cobre. Não importa o aquecimento, com uma colher de pau vá mexendo no vai e vem, para não cristalizar. No momento em que o leite começar a ferver adicione o açúcar, e não pare de mexer, sempre no vai e vem, de um lado para o outro. Nunca faça círculos.
Quando o doce começar a subir, bata com uma concha até ele baixar. Depois que o doce, engrossar, não subirá mais, pois o ar pára de entrar na mistura. Para o ponto de compoteira, vá mexendo até que adquira textura de um mingau grosso. Faça o teste: pingue uma gota do doce em um prato de louça ou ágata e espere o tempo de uma ave-maria (uns dois minutos); a seguir vire o prato; se a gota não escorrer está pronto.
Tire o tacho do fogão e coloque em cima de uma rodilha (um pano molhado torcido, para abaixar a temperatura mas evitar choque térmico). Por cinco minutos, bata em círculos, mas apenas em uma direção. Na roça, usa-se servir em copinhos ou compoteira.”
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Disputa no Mercosul
Argentinos, brasileiros e uruguaios não precisam de muito para alimentar uma nova rivalidade. E os temas podem ir muito além de futebol e comércio exterior.
O doce de leite (ou dulce de leche) certamente é um deles. Enquanto nossos vizinhos banhados pelo Rio da Prata têm uma escola muito personalista no manejo do quitute, a expertise brasileira nos leva à zona rural de Minas Gerais, nosso principal centro produtor.
É a trajetória do dulce, elaborado nas ricas fazendas do Pampa com leite de vacas européias, versus o doce que, como conta a cozinheira Dona Lucinha, está presente nas Gerais desde que as primeiras cabeças de gado (de matriz zebuína) chegaram ao Estado.
E antes que alguma das partes declare o advento de um doce com “denominação de origem controlada” (os argentinos são os mais próximos disso), a reportagem foi em busca das diferenças e semelhanças das três tradições. Dentro de algo que parece tão estrito, cabe um mundo de interpretações diferentes - a começar pela variação de cores. Argentinos e uruguaios usam proporções elevadas de açúcar. Brasileiros trabalham com um leite mais magro. Sem contar uma variedade enorme de truques e ingredientes coadjuvantes especiais. De chefs, como Paola Carosella e Clo Dimet, a cozinheiras amadoras, todos têm sua maneira pessoal de prepará-lo.
A reportagem foi aos mercados e encontrou doces brasileiros principalmente de Minas Gerais, mas não só de lá. Constatou que os argentinos também aparecem bem em nossas gôndolas. E que os itens uruguaios ainda chegam pouco por aqui, inclusive o mais famoso deles, da Conaprole. Ouvimos também defensores dos três pontos de vista, que oferecem segredos do doce e ensinam receitas em que ele é protagonista. Qual é o melhor? Seremos mineiros: apresentamos uma dúzia de produtos disponíveis nos bons mercados, para que você escolha.
ARGENTINA
Cor do doce: vai do caramelo claro ao escuro.
Textura: lisa e viscosa, chega quase ao ponto de puxa-puxa.
Teor de açúcar: alto. Algumas receitas chegam a propor um quilo de açúcar para cada dois litros de leite.
Leite: gordo, cremoso, produzido a partir de gado de origem européia, de raças como holandesa e jersey. Os animais têm ainda ao seu dispor um dos pastos mais ricos e nutritivos do mundo.
Estilo argentino: o doce é uma obsessão nacional, considerado o único alimento puramente nacional. Está presente no dia-a-dia da população, por todo território argentino. É comido das mais variadas formas: puro, como recheio e cobertura de receitas doces, como acompanhamento. Foi declarado “patrimônio cultural e gastronômico” pelo governo.
BRASIL
Cor do doce: do quase areia ao dourado, com toques de amarelo.
Textura: lisa, com pouca viscosidade, menos elástico.
Teor de açúcar: muito baixo, se comparado com os argentinos.
Leite: mais magro, obtido especialmente de gado de origem zebuína, de raças como a gir e seus cruzamentos (entre eles o girolando, com o gado holandês).
Estilo brasileiro: no país, o doce remete a comida do interior, da fazenda. Apesar de ser encontrado em quase todos os Estados, Minas Gerais é a grande referência nacional. É da Zona da Mata de Minas que sai o Viçosa, o doce de leite “acadêmico”. Produzido pelo laticínio Funarbe, na Universidade Federal de Viçosa, o doce tem sido premiado como um dos melhores do País.
URUGUAI
Cor do doce: caramelo claro, com notas amarelas.
Textura: menos viscoso do que o argentino.
Teor de açúcar: mais baixo do que o argentino, porém mais alto do que o brasileiro.
Leite: semelhante ao argentino, tirado também de vacas de raças de origem européia.
Estilo uruguaio: O quitute exerce nos uruguaios a mesma fascinação que causa nos argentinos, e faz parte de todas as refeições. Entres os usos mais populares, destaca-se a panqueca de dulce de leche. A chef uruguaia Clo Dimet esclarece: “tecnicamente, um bom doce é feito com leite magro, padronizado, 15% de açúcar e 0,5 gramas de bicarbonato de sódio para cada litro de leite. Deve ter textura aveludada, cor caramelo e suave paladar”.
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Receitas
SUFLÊ DE DOCE DE LEITE
(Chef Clo Dimet)
Quantidade: 10 porções
Ingredientes: 660 g de doce de leite 9 claras de ovo
Preparo: Bata as claras em neve. Acrescente o doce de leite, misturando levemente. Coloque em formas individuais de 65 g e leve ao forno a 180ºC por 10 min. Sirva junto com calda de chocolate e purê de banana. Calorias: 160 kcal (a porção).
DOCE DE LEITE
(Chef Paola Carosella)
Quantidade: 10 porções
Ingredientes: 6 litros de leite 3 kg de açúcar 1 fava de baunilha 1 colher (chá) de bicarbonato de sódio
Preparo: Misture todos os ingredientes em uma panela. Leve ao fogo alto até ferver. Reduza o fogo, coloque um pires invertido na base da panela e cozinhe por 4 horas em fogo baixo. Deixe esfriar dentro da panela. Não retire a espuma que se forma na superfície durante o cozimento. Guarde na geladeira por até 4 dias, depois disso pode começar a açucarar.
Calorias: 75 kcal (a porção)
CHOCOTORTA
(Chef Paola Carosella)
Tempo de preparo: 35 minutos
Grau de dificuldade: médio
Ingredientes: Para a torta: bolachas de chocolate; leite; queijo branco (Fromage Blanc Paulo Capri); doce de leite.
Para o suspiro: 1 xícara de claras; 2 xícaras de açúcar.
Preparo: Suspiro: Misture as claras com o açúcar e leve ao fogo brando. Bata essa mistura com fuet ou batedeira elétrica sobre o fogo até aquecer as claras e dissolver o açúcar. Retire o creme do fogo e termine de bater até esfriar por completo. Torta: Misture o doce de leite e o queijo branco em partes iguais. Molhe as bolachas no leite e intercale camadas de bolachas molhadas com o creme de doce de leite. Finalize com os suspiros.
Calorias: 290 kcal.