Articulistas

O rio da minha aldeia

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

Alberto Caeiro, um dos heterônimos perfeitos de Fernando Pessoa, buscava a objetividade absoluta como elemento fundamental de um poema. Assim, contrapõe o rio da sua aldeia, humilde, ignorado e despretensioso, ao Tejo, famoso rio português impregnado de recordações do passado glorioso do país. “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.” O poema foi passado em revista e analisado por milhares de estudos literários e nenhum deles explica que rio e que aldeia são essas. Deve ser um curso d’água insignificante, sem o sol que banha as encostas do Minho ou do Douro repletas de videiras de consagradas cepas. Nada disso importa. O rio da minha aldeia é o rio da minha aldeia. Fosse eu um poeta inspirado, mesmo canhestro, cantaria o Rio Bauru. Poderia compará-lo com o Tietê, utilizado pelos bandeirantes paulistas que o navegaram com seus batelões rumo ao oeste, em busca do ouro e das esmeraldas. Tiveram suas frustrações, mas pelo menos ajudaram a consolidar um Brasil de dimensões continentais.

Infelizmente, nunca ninguém pensou no que há para além, ao aquém, do rio da minha aldeia. Vivemos aqui o mesmo drama de Alberto Caeiro, que se lamentava, melancólico, do seu rio que não faz pensar em nada. “Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. Nenhuma inspiração nos pode trazer o rio Bauru como esgoto a céu aberto. Os garotos que tiveram a ventura de pescar guarus com peneiras às suas margens, provavelmente já morreram ou estão tão velhos a ponto de não acharem valer a pena um protesto à degradação do rio das recordações de infância. Li o substancioso e bem editado suplemento dos 113 anos de Bauru, encartado no JC. Reportagens interessantes, depoimentos contextualizados em dados sociais e antropológicos. Um primor. “Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia/ E para onde ele vai/ E donde ele vem.” A objetividade do poeta contrasta com sua esperança velada de um dia ter uma fonte de lembranças na paisagem da sua terra. Acena com um até talvez, até quem sabe. Um dia, também nossos filhos e netos poderão se inspirar às margens do rio hoje relegado. Até lá o bauruense terá passado por mutações no seu conjunto de representações, de sentimentos e de tendências não explicáveis pela psicologia do indivíduo. O grupamento social é que tomará essa decisão. Prefeito ambientalista só, não basta. A Câmara de Vereadores é refratária ao endividamento público para tratar o esgoto, escaldada pela história recente de dinheiro mal empregado, juros corrosivos e amortizações superfaturadas. Todos têm razão até que a consciência coletiva fale mais alto.

Em 1906, o rio Bauru transbordou em “furiosa catadupa, levando na corrente, de roldão, casas de suas margens, pontes de madeira, arrancando arbustos e toneladas de areia”. Quem conta é o historiador Carlos Fernandes de Paiva. Todos estes entulhos arrastados pela corrente dos rios Bauru e das Flores foram parar no quintal de Francisco Ministro Zani. O dique natural deu origem a uma lagoa, logo chamada “do Ministro”. Inspirado pela nova paisagem Ministro Zani limpou as margens, solidificou a barragem e transformou a lagoa numa área de recreio. Logo surgiram os barcos a remo, o bar, o caramanchão para os bailes animados pela banda do Zezinho Marques. Todos os domingos e feriados, às três horas da tarde, a banda descia a Araújo Leite, em cujo final se localizava o “aprazível recanto”. Nem sei de os poetas se inspiravam às suas margens. Garantem os cronistas da época que muitos casamentos ali foram prometidos. Em 1935 novas chuvas torrenciais e lá se foi a lagoa enterrada por um aluvião de areia e de materiais de construção. O assoreamento à montante impediu o livre curso do rio, que cobrou o seu preço. “Dir-se-ia que o ribeiro lendário, enciumado pela pompa de sua hóspede formosa teria conspirado com as ninfas para a restauração do seu império” - termina Carlos Fernandes de Paiva.

Continuo fiel ao rio da minha aldeia. Mesmo feio e sujo. Será motivo de orgulho um dia. Não é tão belo quanto o Sena, nem o Danúbio, mas é o rio da minha aldeia.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC

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