Um herói. Toda nação possui um herói nacional como ideal, alguém que mereça ser copiado e resuma o espírito altruísta de um povo. Oficialmente, no Brasil Tiradentes - que é homenageado no dia de hoje - é considerado herói da Inconfidência Mineira, movimento de independência de Portugal abafado no século XVIII.
Contudo, a imagem da representação do martírio do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, assemelha-se demasiadamente ao martírio de Jesus, e que será celebrado amanhã na Paixão de Cristo. Nas últimas décadas, historiadores passaram a recontar diversos episódios da história brasileira. Sobrou também para Tiradentes ser rescrito.
A imagem clássica de Tiradentes projeta-se sobre a imagem do Cristo, ambos martirizados. No entanto, pelos costumes da época, especialistas refutam a barba e os cabelos longos que remetem de imediato a várias imagens clássicas de Cristo martirizado na cruz.
O quadro que melhor retrata essa junção de personagens é o Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, datado de 1893 e que está no Museu Mariano Procópio. A pintura foi confeccionada logo após a Proclamação da República (1889).
O professor de história do Brasil da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Unesp de Bauru, Célio Losnak analisa que essa imagem reforçou a aproximação entre o martírio do defensor da liberdade, Tiradentes, com a Paixão, o martírio de Cristo.
Tiradentes era alferes, patente de oficial abaixo de tenente na hierarquia militar antiga. Na condição de militar não era comum barba e cabelo compridos. Ainda no período de prisão, os pelos eram cortados como prevenção a piolhos e, no momento da execução, aqueles condenados à forca deveriam ter a cabeça e a barba raspadas. Uma imagem que em nada lembra o pintura de Pedro Américo.
Losnak explica que, no século 19, Tiradentes não era reconhecido como um herói. Ele recupera o estudo do historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, autor do livro "A formação das Almas: O imaginário da República no Brasil", com edição da Cia da Letras. Segundo Losnak, Carvalho demonstra que o grupo diretamente envolvido na Proclamação percebe que o movimento foi orquestrado e realizado por uma elite política e que necessita imprimir legitimidade ao projeto republicano brasileiro.
Idealização
Discorrendo sobre a pesquisa de Carvalho, Losnak comenta que os republicanos, na primeira década após a Proclamação, difundem valores propagandísticos e cívicos que convencessem os outros setores da sociedade de que o projeto republicano tinha importância social. A propaganda destaca os símbolos, como a bandeira, o hino nacional, o ideário positivista de "Ordem e Progresso" e a recuperação de Tiradentes.
Carvalho dedica o capítulo 3 de sua obra para tratar do processo de idealização feito em torno de Tiradentes e discute as causas que favoreceram o estabelecimento deste personagem como herói nacional.
Losnak acrescenta que os republicanos esculpiram o personagem Tiradentes como alguém que precedeu o projeto republicano, preenchendo o personagem como um mártir que deu a vida pela luta de independência do Brasil em relação à Metrópole.
"Aí eles estão pensando a República como um regime político superior à Monarquia. Que significava nesta ideia republicana de igualdade de todos os cidadãos, portanto mais democrático do que a Monarquia", destaca.
Losnak ressalta que, embora a ação de Tiradentes não tenha sido exatamente republicana, eles estabelecem uma aproximação de sentido e é quando o alferes passa a ser valorizado como um precursor dos ideais de liberdade do discurso republicano. Neste contexto, aponta Losnak, é que se difunde a ideia de Tiradentes como mártir. "Um indivíduo que representa os valores de civismo da sociedade e da nação", frisa.
Valores cívicos
O professor de história Losnak ressalta que, em períodos autoritários, os valores cívicos são exaltados como recurso de propaganda e argumentativo para levar o indivíduo a se afinar com o Estado, na perspectiva da ideia de nação, de comunidade, da ideia do envolvimento do cidadão com o Estado.
O professor da Unesp destaca que isso está bem representado no período Getulista, em especial no Estado Novo, com ênfase na personalidade e também nos valores cívicos de Estado. Da mesma forma, o apelo ao civismo e o culto aos símbolos da Pátria ocorrem após o golpe militar de 1964.
"Aí o Tiradentes aparece como recurso. Em uma ênfase cívica, os militares lançam mão de uma memória existente que está nos livros oficiais e nos livros dos historiadores tradicionais", pontua Losnak.
Há pesquisas, como a do historiador carioca Marcos Antônio Correa, que explicitam que sim, houve um enforcamento, mas a cabeça que rolou não foi a do alferes Joaquim José da Silva Xavier naquele 21 de abril de 1792, durante a execução no Rio de Janeiro.
Assim como é válido o argumento de que o mito de Tiradentes interessa aos ideais republicanos, sua desconstrução interessa ao ideário monarquista, ainda vivo no Brasil. Além de republicanos e monarquistas, outras versões impulsionam as polêmicas que colaboram para a reflexão sobre o que é o Brasil.
Independente de polêmicas, Tiradentes é oficialmente patrono cívico da nação brasileira, título determinado pela lei federal número 4.897, de 9 de dezembro de 1965, no governo do general Humberto Castello Branco. A legislação manda que Tiradentes seja cultuado pelas Forças Armadas, estabelecimentos de ensino, repartições públicas entre outros segmentos da sociedade.
Inconfidência Mineira e seus ícones
O século XVIII foi de grande agitação libertária nas colônias. O Brasil tinha que mandar para Portugal uma tonelada de ouro a cada ano. O minério precioso começou a escassear e a colônia não conseguia atingir a cota exigida pela coroa portuguesa.
O marquês de Pombal, primeiro ministro português e responsável pela administração da mineração no Brasil, aceitava a rolagem da dívida e o Brasil passou a se endividar. No auge da crise, a dívida de ouro atingiu 9 toneladas. A insurreição em outras colônias, como a declaração de independência das 13 colônias norte-americanas da coroa britânica, fez crescer o ideal de liberdade comercial no Brasil em relação à Metrópole. O descontentamento da colônia brasileira piorou com o risco da cobrança total da dívida - Derrama. A ideia de independência era vista pelos mais abastados como solução da dívida que cada um tinha com a coroa, inclusive a dos ricos portugueses que habitavam a colônia.
Visconde de Barbacena, governador de Minas, passou a apertar os contratadores. A traição ao ideal inconfidente levou a um processo contra os revoltosos - Devassa.
No processo, apenas Tiradentes recebeu a pena de morte na forca, executada no dia 21 de abril de 1792. Ele foi enforcado no Rio de Janeiro. Partes do seu corpo esquartejado foram expostos em postes na estrada que ligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Sua casa foi queimada e seus bens confiscados.
No movimento da Inconfidência Mineira destacaram-se, além de Tiradentes, os padres Carlos Correia de Toledo e Melo, José da Silva e Oliveira Rolim e Manuel Rodrigues da Costa, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante dos Dragões, os coronéis Domingos de Abreu e Joaquim Silvério dos Reis (um dos delatores do movimento), os poetas Cláudio Manuel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, ex-ouvidor.