Milênios antes do cristianismo, nossos ancestrais já reconheciam que a Natureza possui ritmos e ciclos inevitáveis de nascimento e morte. Os primeiros pensadores, ao se preocupar em tentar compreender o mundo, sentiam que existia uma sabedoria cósmica, anterior à própria existência dos homens e que era totalmente independente das decisões tomadas pela humanidade. Há dois momentos no calendário solar em que os ritmos universais são marcantes: os solstícios de verão e de inverno. Desde tempos imemoriais, os homens festejam estas datas com monumentos impressionantes (como o de Stonehenge) ou com festas deliciosas e sensuais.
No hemisfério norte, na época em que o cristianismo se consolidava, o solstício de inverno ocorria em 25 de dezembro e solstício de verão acontecia em 24 de junho. O dia 25 de dezembro, contradizendo o pleno frio e o fato de que se vive a noite mais longa do ano, marca o renascimento: a partir daquela data, o sol ? vagarosa e inexoravelmente ? ampliaria o seu percurso diário, vencendo as trevas. O dia 24 de junho, que era o dia mais longo do ano, expressa o auge do convívio, da fertilidade e da alegria; é o momento de se alimentar com guloseimas e de se purificar saltando sobre uma fogueira em que se atiram substâncias com efeitos sobrenaturais. As festas de solstício, consagradas pela sabedoria pagã e pela filosofia grega, marcam a comunhão com a ordem universal, externa ao domínio humano. Os gregos festejavam os solstícios com bebedeiras homéricas e orgias dionisíacas.
São João (que é festejado no Brasil com fogueiras, quadrilhas, comida, bebida, danças, jogos e adivinhações) provavelmente rejeitaria o estilo dos festejos criados para homenageá-lo. As festas juninas (que têm no dia de São João o seu ponto alto) são dionisíacas, celebrando o mistério da renovação da Natureza. Em dia de São João, os convivas não se preocupam com os dogmas do catolicismo, mas em reverenciar os ciclos existenciais dirigidos por uma ordem universal, anteriores ao cristianismo e à própria existência da espécie humana.
São João era primo de Jesus e morreu degolado na Palestina. Em seu apostolado decretou que o logos encarnou em um Homem-Deus, que se fez crucificar e ressuscitar para salvar a humanidade. Para São João, a imortalidade não é algo anônimo e universal: só podem ascender ao paraíso aqueles que fazem a opção, individual e consciente, que assumem certos comportamentos e que obedecem a determinadas prescrições. O logos, no evangelho segundo São João, deixou de ser usufruído de maneira universal e inexorável; nem todos irão se salvar, permanecendo integrados ao cosmos, à vida eterna. São João construiu barreiras, distanciando do paraíso aqueles que não seguem as prescrições do Verbo que se fez carne.
Mas não há como negar que a força dos rituais de alimentação, o arrasta-pé sensual, o "quentão", a vontade de adivinhar quem vai casar e o calor da fogueira indicam que, na batalha ideológica das festas de junho, a vitória é do sensualismo pagão. Santo Antonio tornou-se o legitimador de conjunções carnais; as procissões foram substituídas por quadrilhas; a roupa de caipira substituiu o traje litúrgico; heróis ibéricos, cavalhadas e os rojões que simbolizam as armas dos cavaleiros medievais ocupam os lugares que eram dos santos, dos martírios e da cruz. No confronto do solstício do meio do ano, a Igreja perdeu para o paganismo. As festas juninas são rituais pagãos.
O autor, Ney Vilela, é coordenador regional do Instituto Teotônio Vilela