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O último tokkotai

Neto Del Hoyo
| Tempo de leitura: 27 min

Com a rendição do Japão em agosto de 1945, a força Aliada confirmava a vitória diante dos países que compunham o Eixo (Itália/Alemanha/Japão), colocando um ponto final na Segunda Guerra Mundial. Do outro lado do planeta, este foi o início de uma outra batalha, desta vez, entre os próprios japoneses.

No Interior de São Paulo, cerca de 200 mil imigrantes formavam a maior colônia fora do país oriental. E estes se viram divididos em dois grupos: os que acreditavam e aceitavam a rendição, chamados de traidores e apelidados de “corações sujos” pelo segundo grupo, formado pelos que endeusavam o imperador Hirohito, acreditando fielmente na vitória do Japão.

É neste contexto que viveu Tokuiti Hidaka, o último “tokkotai” ainda vivo - assim eram chamados os soldados do Imperador. Hoje com 86 anos e dono de uma bicicletaria em Marília (a 100 km de Bauru), Hidaka foi um dos personagens entrevistados pelo jornalista Fernando Morais, que trouxe no livro “Corações Sujos” a história deste conflito e das ações da Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, uma organização secreta japonesa que se uniu para exterminar os próprios japoneses que acreditavam na derrota. Campeão de vendas, o livro inspirou recentemente o filme do cineasta Vicente Amorim.

Neto Del Hoyo

 

A reportagem do JC foi até Marília. Refez o mesmo roteiro de Fernando Morais e conseguiu uma nova entrevista do último personagem vivo de uma história que mescla ficção e realidade, retratando as páginas mais sangrentas dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil.

Em entrevista ao JC, Hidaka fala dos dramas que enfrentou durante a guerra, e da luta que travou após o conflito. Como “tokkotai”, ele tramou e participou da execução de dois japoneses que, segundo ele, traíram a pátria. De acordo com dados levantados na obra “Corações Sujos”, a Shindo Renmei coordenou a execução de 23 imigrantes, e ainda o espancamento de outros 150. Todos acusados de traição à pátria pelo “crime” de terem acreditado na verdade. A ação de “limpeza” na colônia durou de janeiro de 1946 até fevereiro do ano seguinte. Mais de 30 mil suspeitos foram presos pelos Departamento de Ordem Política Social (Dops), e outros 381 receberam condenações de um a trinta anos de prisão. Um deles, Hidaka. Sua última passagem em uma prisão foi no então recém-criado Instituto Penal Agrícola (IPA) de Bauru.

Hidaka conta que, apesar de fazer parte da Shindo Renmei, nunca executou a mando de ninguém. Num discurso de quem condena o texto do livro e o roteiro do filme, diz que tudo não passa de ficção, garante que nunca foi um “tokkotai” e nega ter tirado a vida de outros compatriotas que  admitiram a derrota do Japão. Porém, sem negar a participação nos crimes, Hidaka afirma que os assassinatos dos quais participou, planejados e executados com orientação militar, foram isolados e movidos pura e simplesmente pelo sentimento de patriotismo de um grupo de japoneses que não podia acreditar na queda do Imperador - uma figura divina para seus fiéis súditos.

Neto Del Hoyo

 

Nasce a Shindo Renmei

Ano de 1942. As restrições impostas aos japoneses pelas leis de guerra que haviam sido desenterradas no Brasil, já se tornavam insuportáveis. Foi então que algumas organizações patrióticas decidiram não deixar uma comunidade de cerca de 200 mil pessoas isoladas, e submetida às piores humilhações.

O simples fato de formar uma rodinha de amigos e trocar meia dúzia de palavras era motivo para que os japoneses fossem caçados. Foi neste ano que duas famílias de lavradores em Marília conseguiram do então delegado de polícia, autorização para realizar uma festa de casamento de seus filhos no melhor hotel da cidade, o Sawaya - localizado na esquina das ruas Maranhão e Carlos Gomes, região central da cidade.

Como lembra “Corações Sujos”, foi neste período, nas últimas 72 horas, que cinco navios brasileiros haviam sido destruídos por submarinos do Eixo: nos três dias, afundaram o Baependi, Anibal Benévolo, Itagiba, Araras e Araraquara. A relação entre brasileiros e japoneses não estava nada amistosa. Fica difícil entender a liberação por parte do delegado para uma reunião entre japoneses, até então para comemorar um casamento. Mais do que isso, como explicar tantos salvo-condutos (cartas de liberação para japoneses transitarem dentro do País durante a guerra), e todos com o mesmo destino? Provavelmente, estavam ali ilegalmente. Relatos da época falam de um casamento de fachada, que camuflou uma reunião onde estava exposta bandeira japonesa e uma foto do Imperador.

Debaixo da bandeira do Japão - uma variante usada historicamente pelas Forças Armadas, particularmente a Marinha Imperial, com os 16 raios do sol vermelho invadindo o tecido branco -, nascia ali a Shindo Renmei, ou Liga do Caminho dos Súditos.

Os marilienses se sentiram incomodados e relatos da imprensa local falam em “uma confusão geral”. As coisas melhoraram quando o efetivo de Bauru chegou. “A colônia já não está mais órfã”, teria dito no brinde oficial, já fugido para Quintana (44 km de Marília), o coronel Junji Kikawa, na presença do capitão Kiyo Yamauchi e do também coronel, Jinsaku Wakiyama.

Até 1942 os japoneses se dividiam em cerca de 30 associações. Embora oficialmente extintas pela lei de guerra, quase todas sobreviviam clandestinamente pregando os valores da cultura nipônica.

 

Rendição do Japão: o fim e o começo

Em agosto de 1945, a Marinha Imperial Japonesa estava sem recursos e a derrota cada vez mais próxima. Os dias 6 e 9 de agosto ficaram marcados pelos ataques nucleares lançados pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Em 8 de agosto, a União Soviética declarou guerra ao Japão e iniciou a invasão da Manchúria (região no leste da Ásia).

Foi após os ataques nucleares e a derrota do Exército Imperial, que o Imperador Hirohito acabou aceitando a rendição do Japão, em 28 de agosto - mas que só em 2 de setembro teve a ata de rendição assinada por oficiais do Japão.

Longe de sua terra, os japoneses imigrantes no Brasil e nos Estados Unidos, em sua maioria, não acreditavam na derrota.

“A gente só escutava boatos. Não tinha rádio no sítio, não entendia o português e os jornais japoneses mandaram cortar. A gente só acreditava, que nem fé: Japão nunca perde guerra. Não tinha como acreditar em outra coisa. Só acreditar em nossa pátria. Oitenta por cento era nesta situação. Alguns poucos liam livros e entendiam (a verdade). No começo o Japão estava bom, depois acabou avião e ficou ruim. Mas a gente não sabia disso. Ouvia rádio escondido lá em Tupã, rádio japonês. A gente fechava tudo, ficava escondido e escutava. Mas a rádio japonesa falava que o Japão estava vencendo. Alguns que viam os jornais brasileiros falavam ‘ah, isso é propaganda dos Aliados, o Japão nunca perde uma guerra’. A gente não acreditava”, cita Hidaka.

Documentos da polícia paulista mostram decoupagens de escutas feitas em rádios piratas da Shindo Renmei, que trazia gravações com discursos de vitória japonesa na guerra.

“O japonês sofria muito. Tudo era motivo de encrenca por causa do nacionalismo. Padaria de japonês não podia comprar fermento, porque o fermento era judeu, ou inglês, e inglês não vendia coisa pra japonês. Essas coisas só nós sabemos. Antes da guerra não tinha nada disso, foi no tempo da guerra. Onde que vamos apelar? Alguns amigos brasileiros compravam e forneciam. Muitas padarias fecharam por isso. Mas guerra é assim mesmo. Por isso eu sempre falo: se não tivesse acontecido a guerra, a nossa guerra também não tinha acontecido. Não tinha inimizade entre nós. Ninguém sofria. Guerra é coisa muito ruim”, comenta Hidaka.

‘Corações Sujos é ficção’

Lançado em 2000 pela editora Companhia das Letras, “Corações Sujos” é uma obra baseada no drama vivido pelos imigrantes japoneses no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial.

As histórias e personagens que transitam pelo livro são frutos de uma grande reportagem do jornalista Fernando Morais, que virou best-seller e foi vencedor do Prêmio Jabuti de Não-Ficção em 2001.

Foram mais de cinco anos de pesquisa, reunindo arquivos do governo, viagens ao Interior de São Paulo e entrevistas com parentes e sobreviventes do período, um deles, o próprio Tokuiti Hidaka.

Neste ano, o livro de Morais virou filme. Dirigido pelo cineasta Vicente Amorim, estreou nas telonas em 17 de agosto.

Apesar de não entender muito a língua portuguesa, Hidaka garante que a obra do jornalista não passa de ficção. “Não é tudo verdade. Detalhadamente não sei, mas ele disse que nós matamos 23 pessoas. Não foram 23 pessoas. Do nosso lado também tinha algumas vítimas. Inocente morreu torturado. No livro só fala de dois. Mataram famílias inteiras. Falaram que por vitória ou derrota fizemos aquilo lá (assassinatos). Não era isso”, explica.

O discurso de Hidaka parece confuso. Nem o livro e nem o filme falam que seu grupo matou 23 pessoas. As pesquisas de Fernando Morais escancaram a realidade de uma batalha que começou após o fim da Segunda Guerra Mundial, e da qual Hidaka participou como mais um soldado a serviço do Império.


JC - O senhor chegou a assistir o filme?

Hidaka - Não. É ficção. Já me contaram (sobre o filme), mas não quis ver. Filme é baseado, mas não é a verdade.

JC - Mas é um dos personagens do livro. Na primeira cena o senhor ataca o soldado Edmundo...

Hidaka - Pois é, estou na primeira cena não é? Disse que (o ator) é um moço bonito né? (risos). Bem alto (Hidaka ri. Ele não passa dos 1,54m). Falam que eu estava armado com faca para pegar ele (cabo). Mas tinha um só que disse que estava com uma faca escondida. Aí eu já não sei se chegássemos lá e o cabo Edmundo falasse ‘não, eu pisei na bandeira mesmo’, o que poderia acontecer... Mas depois, esse japonês que falou que viu o cabo fazer isso (limpar a bota), não sei se foi preso ou torturado, falou que não tinha visto nada. Então ficou só a nossa palavra. O que pisou, se pisou, não ia falar.

JC - Corações Sujos. Já havia visto esta expressão?

Hidaka - Não posso falar que o livro é ruim, ou o filme é ruim. Disseram que o filme é muito bom. Mas o livro é ficção. Não existia isso de Corações Sujos, isso ‘seo’ Fernando (Morais, escritor) que inventou.

O autor

Jornalista, escritor e político, Fernando Morais é mineiro e construiu sua carreira  em São Paulo. Trabalhou nas redações do Jornal da Tarde, Veja, Folha de S. Paulo e TV Cultura. Foi três vezes vencedor do Prêmio Esso e quatro vezes do Prêmio Abril de Jornalismo. Como político, foi deputado estadual e secretário de Cultura e de Educação do Estado de São Paulo. “Corações Sujos” é seu oitavo livro. Ele ainda é autor dos best-sellers “Olga”, “Chatô, o rei do Brasil” e “O Mago”, biografia do escritor Paulo Coelho, publicado em mais de 30 países.

Os ‘sete heróis’ de Tupã

Tanto o livro quanto o filme “Corações Sujos” têm início na mesma cena. Em Tupã, após a rendição do Japão, um momento marcou toda a trama. Após denúncia, o baiano Edmundo Vieira Sá, cabo da Força Pública paulista (hoje a Polícia Militar), se deslocou até a casa de um imigrante junto com mais seis soldados. Shigueo Koketsu recebia em sua casa imigrantes que comemoravam o Oshogatsu, o Ano Novo japonês, marcando o início do ano 21 da Era Showa, do reinado do Imperador Hiroíto. Truculento, o cabo ordenou que a comemoração terminasse naquele instante e declarou a prisão de alguns, isso respaldado pelas leis de guerra que impediam qualquer manifestação japonesa no Brasil.

Em dado momento, o cabo arrancou a bandeira do Japão do mastro improvisado e, num gesto de crueldade, após ouvir que esta era sagrada, abaixou-se e limpou com suas botas sujas de estrume.

A notícia se espalhou na colônia e um grupo de sete japoneses se uniu para tirar satisfações com o tal cabo Edmundo. E ali, como o mais novo deles, estava Hidaka.

Em entrevista, o último “tokkotai” nega a maneira como a cena é retratada, tanto no livro quanto no filme, e diz que a intenção não era matar o cabo.

“A gente não tinha nada com Edmundo, não. Nós respeitávamos, não fomos lá para matar ele. Acontece que um japonês viu ele limpando a bota. Então fomos lá para ver se era verdade”, conta.

Hidaka ainda revela que, na verdade, os “sete heróis” seriam nove.

“Eram nove pessoas. Nós fomos na cadeia perguntar se o ‘seo’ Edmundo estava lá. Então dois falaram que sabiam onde tinha um bar onde faziam jogatinas os amigos dele (Edmundo). Então ficamos os sete esperando, quando fomos cercados. Falaram que a gente estava com espada na mão, isso é invenção. Fomos saber só se era verdade esta história dele limpar a bota com a bandeira. Fomos presos. Dois escaparam porque estavam procurando cabo em outro lugar”.

Hidaka e os outros seis companheiros, que chegaram a ser chamados de samurais pela colônia, ficaram cerca de 20 dias presos na cadeia de Marília.

O movimento contra o cabo Edmundo foi apenas o começo de uma batalha que já havia estourado nas colônias japonesas.

‘Só pensávamos em executar’

Hidaka caçava 7 oficiais marcados para morrer e se entregou após o assassinato do coronel Wakiyama, no terceiro atentado

“No dia 5 de março (de 1946), desembarcaram em São Paulo, procedentes de Quintana, Marília, Pompéia e Tupã, 40 súditos japoneses, bem instruídos sobre o que deveriam levar a efeito nesta capital. Divididos em 8 grupos de 5 - os tokkotai, ou ‘Unidade Especial de Ataque -, constituíam uma verdadeira tropa de choque terrorista, cujo fanatismo exigia até o sacrifício da própria vida para executar os japoneses que duvidavam da vitória de sua pátria”.

Este trecho, também inserido em “Corações Sujos”, relata o depoimento do delegado de São Paulo, Alfredo de Assis, à imprensa paulistana logo após desmantelar o quartel general da Shindo Renmei. Lá, foram apreendidas fichas de inscrição dos seguidores, bombas caseiras, rádios transmissores usados para captar notícias do Japão, armas (revólveres e facas) e as capas amarelas usadas pelos “tokkotais”, que antes eram vistas frequentemente com feirantes japoneses.

Hidaka, então com 20 anos, estava no trem que desembarcou em São Paulo. Apesar de confirmar os relatos do livro-reportagem de Fernando Morais, ele discorda de algumas atribuições feitas a ele e aos “tokkotais”. “Não fomos a mando de ninguém, muito menos da Shindo Renmei”, diz.

No momento mais tenso da entrevista, Hidaka abaixa a cabeça para falar dos crimes pelos quais julga “ter pago”.

Segundo ele, um grupo de dez imigrantes (cinco casados e cinco solteiros) se reuniu, por conta própria, e elaborou estratégia para “acabar” com a vida de sete oficiais que, para eles, haviam, manchado a imagem do Imperador.

O coronel Jinsaku Wakiyama, Shigetsuna Furuya (ex-embaixador do Japão na Argentina), Kunito Miyasaka (um dos fundadores do Banco América do Sul), Kiyoshi Yamamoto, Senichi Hachiya (um dos pioneiros da imigração no Brasil), Chibata Miyakoshi e Kameichi Yamashita (ex-presidente da Cooperativa Agrícola de Cotia), haviam assinado uma carta que confirmava a derrota japonesa, e que fora estampada na capa do jornal “A Gazeta”, sob o título “Aos compatriotas residentes no Brasil”.

Sem saber, assinavam ali a sentença de morte. Dos sete ataques tramados, apenas três foram cometidos. Dois deles “com sucesso”.

A primeira ação ocorreu em 2 de abril de 1946. O grupo foi dividido em duas frentes de cinco “tokkotais”. O primeiro, comandou o assassinato do industrial Chuzaburo Nomura, que não fazia parte da “lista dos sete”, mas, dono de jornal, foi idealizador do manifesto assinado. Ele foi morto a tiros pelo grupo.

Já o segundo ataque foi contra Shigetsuna Furuya, e Hidaka estava no grupo. A ação, porém, foi frustrada. Os cinco primeiros japoneses que atacaram Nomura foram presos dias depois pelo Dops.

No dia 2 de junho, Hidaka estava no grupo dos quatro que agora restavam, com a missão de matar o coronel Wakiyama, e Chibata Miyakoshi. Só o primeiro ato foi concretizado. Hidaka teria baleado o coronel já morto com um tiro de seu companheiro, Shimpei Kitamura. Na entrevista, ele não nega. Fala do primeiro tiro, e põe-se a abaixar a cabeça novamente: “Nós executamos ele”.


JC - Como vocês se organizaram?

Hidaka - Nem minha família sabia, quando saí de Tupã. Nem dirigentes da Shindo Renmei. Pensamos: ‘Vamos conversar com essas sete pessoas e vamos acabar (com eles), para não fazer uma coisa destas. Foi a carta deles que motivou o desrespeito para com a família japonesa, foram eles que inventaram, e não podem fazer uma coisa destas.

JC - Como foi a primeira morte?

Hidaka - Primeiro foi Nomura, representante do ministério. Foi tiro, mas eu não estava nesta turma.

JC - E depois?

Hidaka - Depois foi embaixador da Argentina, Furuya. Esse não deu certo. Sorte que não deu certo né? Estragar a vida do outro... e família... Quando ele abriu a porta, um dos companheiros, um dos encarregados, afobou. Sorte dele, e sorte nossa também. Aquela hora, pensamos: ‘poxa vida, não deu certo’. Mas ninguém tinha experiência com isso. Dois colegas foram presos pelo guarda noturno, e se entregaram na hora. Eu e mais três corremos. Gritaram: ‘para, para, para’, mas não paramos.

JC - E a segunda ação da qual participou, a morte do coronel

Wakiyama?

Hidaka - Não o conhecia, conheci aquela hora. Levamos a carta para ele se suicidar como militar japonês (cometer o harakiri, que significa literalmente “cortar a barriga”, um suicídio cometido por guerreiros samurais como uma forma de expiar seus crimes e escapar da desonra). Ele estava sentado, pediu para sentarmos e não quisemos. Eu até comprei um terno usado e uma gravata para respeitar o homem. Ele falou que tinha muita idade e não tinha condições de cometer isso. Ai nós executamos o homem. Mas nem tremeu, nem nada. Era um militar mesmo. Ficou assim ó, desse jeito (Hidaka segue sentado, como em posição de sentido e olhar fixo mirando o horizonte). Acho que ele foi um verdadeiro militar. Tem muitos que na hora H mudam. Muitos dirigentes como os da Shindo Renmei mesmo, falavam muito, mas na hora H mijavam pra trás.

JC - Como foi a execução?

Hidaka - Eu tinha um revólver e Kitamura outro. Eu sabia que coronel não ia fugir. No último caso usaria revólver, mas pensávamos que o coronel faria o harakiri. Falei para ele: ‘o senhor como militar faça harakiri, como honra militar. Porque militar japonês não tem rendição’. Ele leu a carta que nós levamos. Ficamos lá porque no harakiri (vítima) não morre na hora, tem que dar (golpe de) misericórdia. A família dele preparava café para a gente, escutamos barulho de xícaras e de gente passando o café. Fomos bem recebidos. Yamashita cuidava para que ninguém entrasse. Na família, não colocávamos a mão. Só pensávamos em executar. Agora não tenho mais coragem, mas naquele tempo não tinha medo, não tinha nada. Ele não fez o harakiri, por isso executamos. A gente levou espadinha (o tanto, uma espécie de punhal). Ele leu a carta de ponta a ponta, enrolou a carta e disse que não faria o harakiri. Kitamura pediu licença e deu o tiro.

JC - E como foram presos?

Hidaka - Soubemos que qualquer moço japonês que chegava em São Paulo era preso. Então, eu, Kitamura, Yoshida e Yamashita (os quatro presentes no assassinato de Wakiyama), jogamos as armas fora, pegamos um táxi e nos apresentamos na Delegacia de Polícia Central. O cerco havia fechado. Não sabíamos falar bem o Português. O policial perguntou o que tínhamos feito para nos entregar. Yamachita explicou e ele nem acreditava. Mandou esperar, deve ter comunicado a polícia e nos colocou no xadrez.

JC - Quanto tempo ficou preso?

Hidaka - Ao todo, quase dez anos, eu acho. Mas fui condenado a 30. Só que nossa pena foi diminuindo pelo bom comportamento.

JC - Mesmo jovem, tinha coragem e capacidade para executar os planos?

Hidaka - Penso: como a gente tinha coragem de fazer isso? Só pensar em pátria, e só isso? Não era pelo dinheiro, nem nome, e nem nada. Nós juramos honrar o país, nem que fosse morto, torturado, tinha que cumprir. Se tivesse a mentalidade de agora, pensaria que era maluco, louco, mas não era assim na época. Fomos educados assim.

JC - Foram só estes 3 atentados que participou?

Hidaka - A gente só queria aquelas sete pessoas para dar exemplo para os outros não fazerem besteira. Foram só estes três. No fim, nós estávamos errados, mas na hora não pensava. Japonês tem que honrar.

 

‘Tokkotai não sou’

A expressão “tokkotai” foi utilizada para nomear os soldados que davam a sua vida pelo Imperador e, de acordo com a crença japonesa, “transformavam-se em suas almas metamorfoseadas”.

Eram chamados desta forma os pilotos da Força Especial de Ataque, nos ataques suicidas denominados kamikazes. Com a descoberta dos planos e das ações da Shindo Renmei, a imprensa brasileira utilizou a expressão para se referir aos “assassinos do Imperador”, ou seja, àqueles que matavam ou morriam pela honra do Império.

Quando questionado se considerava ter sido ou vivido como um “tokkotai”, em uma das poucas respostas firmes, Hidaka nega. “Tem gente que pensa que sou um tokkotai. Tem gente que acha que sou do bando da Yakuza (máfia japonesa), misturam tudo. Não fui tokkotai. A imprensa que colocou esse nome. Tokkotai foi o exército japonês. Mas se a imprensa fala, como vou calar a boca dela? Não tem jeito”.

É neste momento da entrevista que Hidaka parece medir as palavras para tentar explicar sua posição.

Acontece que em “Corações Sujos”, Fernando Morais traz documentos que provam a ligação da Shindo Renmei, de seus “tokkotais”, e do próprio Hidaka. Como na carta de suicídio entregue ao coronel Wakiyama, publicada em sua obra. Abaixo, um dos trechos do documento:

(…) O fato de ter assinado um documento de falsa propaganda da derrota da nossa pátria, publicado pelo inimigo, constitui um ato que conspurca o brio e a dignidade do bravo e fiel Exército Imperial; o crime de traição merece 10 mil mortos.

E assim, nós, os tokkotai, respeitando o seu posto de militar do Império, aconselhamos Vossa Senhoria a manter a honra de soldado, pagando com suicídio o grande crime de traição à pátria, em vez de prolongar a vida e acumular mais crimes.

     Assinado,

     Tokkotai

 

Condenado, mas livre ‘pela honra’

Foram 13 meses de terrorismo promovido pela Shindo Renmei na colônia japonesa. O saldo de 23 pessoas mortas - confrontado por Hidaki - e todos os outros crimes relacionado à seita, resultaram num total de 31.380 imigrantes fichados, de acordo com documentos apresentados por Fernando Morais. Destes, apenas 1.423 foram acusados pelo Ministério Público e 381 denúncias foram aceitas pela Justiça. Já no final de 1946, o então presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, expulsou do País 80 imigrantes acusados de serem autores ou mandantes dos crimes da Shindo Renmei. Dentre eles, Tokuiti Hidaka. Mas nem ele e nem os outros 79 condenados foram expulsos. Ainda em 1956, quando Hidaka e seus companheiros - como ele mesmo os chama - já haviam cumprido quase dez anos da pena, Juscelino Kubitschek substituiu as penas e pôs todos em liberdade.

A vida atrás das grades começou para Hidaka tão logo terminara de executar o terceiro atentado. Após o assassinato do coronel Wakiyama, ele e seus companheiros se entregaram. Dali, foram entregues ao Dops. Foram quase três anos de humilhação aos nacionalistas japoneses. Depois, o bando de “tokkotais” foi transferido para o então recém-criado Instituto Penal Agrícola (IPA) de Bauru. Lá ficaram por cerca de cinco anos - a memória de Hidaka não é precisa quanto ao tempo em cela. Meio século depois, a voz rouca e o olhar marejado ao lembrar dos dias no cárcere revelam a marca da guerra. Hidaka parece voltar no tempo, e só se recompõe quando lembra da liberdade que tinha no IPA, ainda sem grades e abrigando presos em processo de soltura. “Cheguei até a ver um jogo do Noroeste”, conta.

 

JC - Como foram recebidos no Dops?

Hidaka - Ficaram mais de mil pessoas presas lá. E sob nenhuma acusação. Sofríamos muito. Pelo número de japoneses presos, eles (soldados) colocavam a bandeira do Japão no chão junto a foto do imperador e falavam: ‘Pisa e cospe na foto e na bandeira’. Teve muitos que fizeram isso. Eu não vi, graças a Deus. Aquele que não pisou, ficou preso junto com a gente. Inventavam algum crime e mandavam pro ‘xadrez’. Os que pisaram não contaram nem para a família. Mas quem vai provar? Contamos isso e ninguém acreditava, falavam que nós éramos fanáticos.

JC - Tem alguma passagem que marcou isso?

Hidaka - Um dos filhos de um dos líderes da Shindo Renmei foi preso no Dops. Colocaram lá a bandeira e a foto e falaram pra ele: ‘Pisa aí, cospe, e você está livre. A porta está aberta’. Ele falou: ‘Prefiro morrer do que pisar’. Saiu correndo, foi para o terceiro andar e ia pular. Só que deram uma rasteira nele e o pararam. Mas ele ia pular.

JC - Você alguma vez tentou a liberdade?

Hidaka - Como japonês, tenho que cumprir a palavra. Fui ensinado assim desde moleque. Falavam pra gente que não tínhamos armas e nem testemunhas, e então era só falar que tudo não passou de um momento de loucura, que deu confusão na cabeça, para sermos livres. Mas não, nós sempre confirmamos nossa versão.

JC - Eles insistiam em falar sobre a guerra? Que o Japão perdeu?

Hidaka - Em um interrogatório, um delegado do Dops nos perguntou: ‘Porque vocês fazem essa besteira? O Imperador nem sabe que vocês fazem isso’. Yamachita falou: ‘Doutor, o senhor é católico? Então, se alguém mandar pisar e cuspir na imagem de Cristo e na bandeira brasileira, o senhor pisa? O senhor cospe? E fica quieto?’. Ele respondeu que não e mandou nós todos de volta para o ‘xadrez’. O delegado ficou vermelho e terminou o interrogatório.

JC - Chegou a voltar no prédio onde ficava o Dops?

Hidaka - Disseram que agora virou museu, na Estação da Luz (em São Paulo). Então fui lá ver como está o ‘xadrez’ que eu fiquei. Vi um pilar no centro e já falei que este era mesmo o lugar. Aí um guia falou que a dona Dilma (Rousseff, presidente) esteve lá, o nome dela estava gravado no pilar. Então pensei: eu sou ‘cadeieiro’ mais velho que ela. A diferença é que eu sou bicicleteiro em Marília e ela presidente do Brasil.

JC - Quando foi para o IPA? Como foi?

Hidaka - Não me lembro a data. Fiquei uns cinco anos no Dops. De lá fui para o IPA. Não tinha nem grade, nem nada. Eu estava com 20 anos de cadeia (pena) e o diretor mandou pra lá. O diretor do IPA pensou que tinham nos mandado errado, porque lá era tudo recém-saído da prisão. E eu, com 20 anos de cadeia, por tentativa de homicídio e homicídio. Depois, o diretor contou para mim: ‘Quando vi seu prontuário, vish...’. Mas falaram que esse pessoal (Hidaka e outros três companheiros) tinham mandado para cair a pena. Nunca pedi perdão, mas o delegado mesmo fazia recursos para mim por bom comportamento. Em Bauru fiquei uns dois anos. Foi a última vez que fiquei preso. De lá fui para São Paulo, com condicional e só dormia na cadeia. Fomos a terceira leva do IPA.

JC - Como foi que recebeu a mensagem da liberdade?

Hidaka - Doutor Geraldo Andrade Vieira, delegado diretor de Bauru falou: ‘Hidaka, eu fiz uma carta para o presidente do Conselho, que melhor do que está escrito só colocando você como santo’. Tínhamos uma boa conduta, chegamos até a assistir jogos do Noroeste.

JC - Conte mais...

Hidaka - Assisti Noroeste e Ponte Preta. Aquele tempo eu ia assistir, a gente podia e, de vez em quando, o diretor nos levava, sem escolta sem nada. Não lembro quanto foi. Mas os times eram bons.

JC - Quando descobriu a verdade sobre a guerra?

Hidaka - Não sei o dia, mas pouco a pouco o povo japonês foi descobrindo a verdade. Eu mesmo me dominar era difícil. Ter que acreditar que perdemos era complicado. O difícil não é entrar na cabeça, é entrar no coração mesmo. Meu pai me ensinava duas lições: ‘você não pode mentir e nunca envergonhar o Japão’. Tem que ter orgulho de ser japonês.

JC - Acha que foi punido corretamente?

Hidaka - Condenação máxima eu acho que peguei. Fui réu confesso. Foi justo. Nunca pedi perdão.

JC - Se arrepende?

Hidaka - Não, arrepender não. O que falou tem que cumprir. Eu fiz, paguei por isso.

 

‘Quero morrer como japonês’

Tokuiti Hidaka nasceu em 9 de fevereiro de 1926, em Miyazaki, uma província do Japão localizada na ilha de Kyushu. Chegou no Porto de Santos em 8 de dezembro de 1932, então com 6 anos, acompanhado dos pais, dois irmãos (um mais novo e outro mais velho) e um primo num dos navios que traziam imigrantes japoneses.

Depois de perambularem na região da Alta Mogiana por dois anos, a família Hidaka mudou-se para Cabrália Paulista.

“Foram cinco famílias japonesas morar lá, para plantar algodão”, lembra.

Ficaram dois ou três anos em Cabrália, e depois foram para Matão (a 165 km de Bauru).

Foi nessa época que Brasil e Japão tornaram-se inimigos. O governo de Getúlio Vargas cortou relações diplomáticas com o país oriental e o drama de Hidaka só começava.

JC - Como foi sua chegada?

Hidaka - Por dois anos era obrigatório ficar trabalhando da colônia de café. Depois que os escravos acabaram, começou entrar estrangeiros e, por dois anos, era obrigatório que ficassem nas lavouras.

JC - Como foi a adaptação?

Hidaka - Só falava em japonês, não aprendia português. A gente achava que ia voltar (para o Japão). Antes e durante a guerra, a gente pensava em voltar para o Japão, quando houvesse paz.  Depois de uns 20 anos é que fui aprender a falar mais ou menos português. Não precisava. Vivia na colônia, entre japoneses.

JC - Qual o primeiro momento em que se viu abalado com a guerra?

Hidaka - Meu vizinho, seo Matsumi, foi fazer compras em Bauru. Mas voltou antes do esperado, e me encontrou dando milho no chiqueiro. Afobado, me disse: ‘Hidaka-san, chame seu pai correndo. Aconteceu coisa grave’. Ele contou ao meu pai que o Brasil tinha cortado relações (diplomáticas) com o Japão. A gente nem sabia, pois jornais japoneses já estava cortados. O Vice-Consulado de Bauru havia retirado a imagem dourada do Império e a bandeira japonesa. Foi ai que perguntei ao meu pai: ‘Então nós fomos jogados fora no Brasil?’. Meu pai me pediu calma e disse que quando voltasse tudo bem nós retornaríamos ao Japão. ‘Será que havíamos sido esquecidos no Brasil?’, eu me perguntava. Parece que meu sangue parou na hora. (o pai, Genzo Hidaka, foi um dos 31.380 imigrantes suspeitos de ligação com a seita que foram fichados pela polícia paulista).

JC - Se considera um pouco brasileiro?

Hidaka - Vou morrer aqui no Brasil mesmo. Mas no fundo do fundo, me considero japonês mesmo. Não tem jeito. Eu gosto do Brasil, mas não tem jeito. Que nem eu falo, quando eu entrei no Brasil, em Santos eu não lembro muito. Me lembro do Rio de Janeiro, com os braços abertos, como quem dizia ‘bem-vindo ao Brasil’ (ele fala do Cristo Redentor). Naquela hora não entendia porque queria voltar logo para o Japão. Mas em quase 100 anos, ainda me lembro desta imagem. Quero morrer como japonês. Mas gosto do Brasil. Aliás, faz 70 anos que eu pago impostos aqui. Contribuí muito com o Brasil.

Depois de ser preso pelo Dops, ter a extradição determinada, mas revogada tempos depois, Hidaka casou-se logo após sair do IPA. Teve quatro filhos, sendo três homens e uma mulher, e seis netos. “Depois que saí ‘da Bauru’, com 33 anos, eu acho, conheci o pai da minha esposa, que veio me visitar. Nossa ideia era quase igual. Aí casamos logo, nem deu tempo de namorar. Meu irmão mais novo já namorava fazia tempo e, pela tradição, só pode casar quando o mais velho casar. Eu tinha que casar logo”.

Em 1958 Hidaka abriu sua primeira bicicletaria, em Pompéia. O japonês só mudou para Marília (30 km de Pompéia), cidade berço da Shindo Renmei, em 1966 e, dois anos, depois abriu a primeira bicicletaria. Hoje, são duas na cidade.

O último “tokkotai” segue morando em Marília com a esposa, um dos filhos, nora e dois netos. Com 86 anos, o assassino que foi condenado e pagou pelos crimes que cometeu, passa despercebido. Na cidade, Hidaka-san é conhecido muito mais pela habilidade no conserto das bicicletas do que pelo passado que ele mesmo prefere não lembrar.

“Faz mais de 50 anos que moro em Marília e o pessoal já sabe que sou personagem do livro, do filme. Tem gente que mudou por ter entrado na cadeia. Eu não. O que vou fazer? Vou fugir? Eu não. Minha família sabe, meus netos todos sabem. Cumpri a minha condenação”.

 

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