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Água leva 300 anos para chegar ao Aquífero Guarani em Bauru

Nélson Gonçalves
| Tempo de leitura: 11 min

Quioshi Goto

Eric Fabris: “O que temos embaixo de nós não é uma bacia gigante. A água se movimenta por fissuras de forma muito lenta”

O gigantesco reservatório natural que está sob os bauruenses chamado Aquífero Guarani, em uma área de dimensão total que alcança outros países da América do Sul, não é um ‘mar de água doce’ contínuo. Além de ser esparso, os bolsões gigantes interligados por fissuras geológicas levam o equivalente a 300 anos para chegar a área urbana de Bauru.


É o tempo estimado em estudos para que a água ganhe o espaço subterrâneo a partir do principal ponto de infiltração para nós, na serra de Botucatu, próximo à formação geológica conhecida como Torre de Pedra, avistada da rodovia Castelo Branco.


E justamente pelo ritmo de recarga ser muito lento e complexo, as populações que se utilizam de sua água  devem estudá-lo e desenvolver políticas de preservação do manancial, estratégico para o presente e futuro do abastecimento. Mesmo os rios, que são águas superficiais, têm estreita ligação com o Guarani e dependem dele para sua existência. A necessidade de preservação ganha ainda mais força hoje, data em que é comemorado o Dia Mundial da Água.

O chamado sistema Aquífero Guarani, apontado como a segunda maior reserva de água potável do mundo, está disponível em uma espécie de conjunto de esponjas rochosas, algumas ligadas umas às outras. Mas muitas estão esparsas entre si, em vários pontos. Nesse sistema, a reserva da água subterrânea que penetra no solo e começa a pergolar pelo arenito, basalto ou outras formações de nossa geologia regional, leva o equivalente a 300 anos para percorrer o “caminho”.


O engenheiro especialista em fundações e ex-presidente do Departamento de Água e Esgoto (DAE) Eric Fabris aponta o dado a partir de estudo do órgão de saneamento de Araraquara. “Em termos de tempo e disponibilidade, temos de ter a dimensão de que temos sim uma reserva gigantesca embaixo de nós, que pode ser imaginada em tamanho, por exemplo, do próprio Estado de São Paulo em se tratando de reservatório. Mas também é preciso saber que a água que infiltra para frente da serra de Botucatu leva 340 anos para chegar a Araraquara, segundo o estudo feito pelo órgão de saneamento de Araraquara. Ajustada essa conta para Bauru, temos algo perto de 300 anos, entre a água infiltrar lá após a serra e chegar até nossa cidade”, conta Fabris.


Eric Fabris estima que de 70% a 80% da recarga direta do sistema Aquífero Guarani na região aconteça pelas “entradas” na região de Torre de Pedra, em Porangaba, nas proximidades do Rodoserv Star para quem viaja pela rodovia Castelo Branco. O restante do sistema, para a área de influência de interesse de Bauru, vem das chuvas. “O que temos embaixo de nós não é uma bacia gigante de água. É uma areia saturada, cuja dimensão vai da formação do arenito após Botucatu, na região da Torre de Pedra, até aqui. Imagine uma esponja bem porosa. É uma formação em rocha, não é uma imensa bacia de água. E essa formação tem espessuras diferentes em cada região”, cita.

Em Bauru, na região nordeste, por exemplo, o histórico de perfurações do DAE, lembra Fabris, aponta para um poço pouco produtivo no Parque Real, há mais de 20 anos. “Aqui, há um tempo, se perfurava poço em determinada região a profundidades bem inferiores do que agora. Hoje, o DAE perfura em vários locais até 400 metros. Temos sim muita água estocada, mas a recarga é muito lenta. Mas como isso está em uma área imensa, não sentimos isso ainda palpável. Com essa velocidade de recarga de nosso sistema em 300 anos, temos de nos preocupar”, aborda.


O professor doutor pela Federal de São Carlos (Ufscar) especialista em recursos hídricos Edson Cezar Wendland complementa. “O deslocamento lateral é o tempo que essa água em área de recarga leva para atingir as áreas urbanas. Esse deslocamento lateral depende das condições hidrogeológicas, do nível de energia que a água tem para se deslocar, e da propriedade hidráulica do Aquífero, o que é muito lento”, diz.


“A velocidade de deslocamento da água subterrânea da área de recarga no Aquífero para o centro urbano é de centímetros ou metros por ano. Por isso é que demora os 340 anos apontados no estudo de Araraquara. E acho que é até otimista isso. Porque demora ainda mais”, opina.


Aquífero recebe só 10% do que chove


Até 70% se ‘perde’ em evapotranspiração, aproximadamente 20% vai em escoamento pelos rios e o restante fica para armazenamento

Divulgação

Wendland: “O controle de perdas é fundamental, para evitar que o poder público retire do sistema para desperdiçar na rede”

O engenheiro Edson Cezar Wendland, professor da Universidade de São Paulo (USP) São Carlos, especialista em recursos hídricos, estuda o comportamento do Aquífero Guarani há 10 anos na  bacia hidrográfica do Ribeirão da Onça, em área de afloramento quase na divisa entre Brotas e Itirapina.   


Segundo ele, os 10 anos são suficientes para a construção de um modelo matemático de comportamento da recarga de um aquífero em função da precipitação observada. “A precipitação é o que mais influi no aquífero. É igual conta de banco. Se você tem uma entrada regular, você sabe como gerenciar esse recurso dividido em diferentes gastos. Na bacia hidrográfica é igual. Com uma entrada média de 1.500 milímetros por ano, essa água se divide entre evapotranspiração (60% a 70%), escoamento (20%) no rio e o restante é armazenamento no aquífero”, afirma.


A questão é que armazenamento e perenidade do rio estão intimamente ligados. “O rio só existe por causa do aquífero, que retém água, mantém ela e vai liberando lentamente durante o ano. Sem o Aquífero, seria como ocorre no Nordeste, onde, em chuvas intensas, a água escoa e vai embora rapidamente. Não tem retenção. Pense em uma esponja para explicar como funciona o rio. Você umedece a esponja e põe ela sobre uma superfície. Quando a esponja está bem encharcada, ela começa a escoar. E ela escoa por gravidade. Isso é o rio com o aquífero conectado lateralmente com o rio”, exemplifica.


Se a evapotranspiração responde pelo “consumo” de dois terços do volume de chuvas, o manejo de culturas pode colaborar com o processo. “Se você tem uma bacia hidrográfica em uma área muito grande com só um tipo de cultura, todo o processo de recarga vai ser determinado só por essa cultura. A evapotranspiração é muito grande e isso acaba afetando negativamente a recarga”, observa o professor.


Mas Wendland reforça a importância do controle de perdas no sistema de abastecimento local. “Órgão de abastecimento que não tem programa permanente de combate ao desperdício, que não monitora o sistema, incluindo o aquífero, e não investe em controle de perdas, está criando as condições para que a população fique sem água no tempo”, menciona.


Controle de perdas


O engenheiro Edson Wendland posiciona: “o controle de perdas é fundamental, para evitar que o poder público retire do sistema para desperdiçar na rede, jorrando água fora que não retorna para o sistema na mesma relação”. “O que aconteceu no período 2013-2014 é que a precipitação foi bem abaixo da média e os aquíferos não foram recarregados. Então isso não alimenta o rio, que perde sua perenidade. Não é um processo imediato, porque o aquífero é quem controla esse sistema. Mas em uma defasagem de 2013 já tem resultado um ano depois em termos de rio”, finaliza.


Ele sugere acompanhar sistematicamente o comportamento do rio a partir das nascentes. “É preciso também olhar o mapa à montante da captação para ver as utilizações dessa água. Porque se as retiradas foram além da capacidade do rio de forma contínua o rio seca. E, se o solo não está protegido, temos uma vazão instantânea maior que não vai ficar no aquífero. A água vai embora, só inunda na hora”, comenta.


Os vazamentos também funcionam como inimigo do rio. “Se você retira do rio muito mais do que ele pode fornecer e esse sistema não tem reposição adequada, o efeito das perdas, dos vazamentos no sistema, prejudicam ainda mais. Porque é o poder público fazendo retiradas a montante, além do que o rio tem a oferecer, e perde na rede. E essa água não passa pelo rio, jorra fora”, aborda.  


O que é recarga


“Recarga a gente define como a água que atinge a superfície livre do aquífero. Tecnicamente falamos em nível freático, popularmente chamado de lençol. E ela ocorre em diferentes profundidades. Onde está o rio, dependendo da formação geológica, em geral o nível do aquífero é o mesmo do rio. Você vê isso mais facilmente em brejos, onde se você pisar surge umidade ao lado dos calçados”, define o professor Edson Wendland.


Assim, próximo ao rio o nível do aquífero é o mesmo do rio e daí a água vai sendo mais profunda dependendo da topografia. “E essa profundidade pode chegar a 30, 50 metros. Nesses casos a recarga vertical é bem mais longa. Tem de ter chuva regular. E isso dura alguns meses, de dois a quatro meses, dependendo da profundidade, conforme apontamos em nossos trabalhos”, cita.


Por esta razão, a recarga é um mecanismo essencialmente vertical. A água da chuva infiltra e vai por gravidade em determinado ponto atingir o nível do aquífero. O processo dura alguns meses. O professor conta que um aluno do mestrado na USP São Carlos, sob sua orientação, está iniciando o desenvolvimento de método matemático para modelar essas questões para o aquífero Bauru.


Wendland alerta que as cidades não estão monitorando a água subterrânea. “Para poder fazer gestão de qualquer recurso, e não só a água subterrânea, você tem de conhecer o comportamento. No caso do aquífero, você não tem esse monitoramento. A única informação é o nível do aquífero e é fundamental haver programas de monitoramento para ver o que está acontecendo. E isso quase ninguém está fazendo nas cidades”, comenta.


Evapotranspiração é o que mais influencia na taxa


Engenheiro, doutor e professor do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Universidade de São Paulo (USP São Carlos), Edson Wendland, faz pesquisas para estimar, ou quantificar, há mais de uma década, a influência do uso do solo nas taxas de recarga do aquífero. Para tanto, ele desenvolve o monitoramento de todas as variáveis do ciclo hidrológico da bacia hidrográfica do Ribeirão da Onça, em área de afloramento quase na divisa entre Brotas e Itirapina, na região norte. A área tem uso essencialmente rural, com eucalipto, cana-de-açúcar, cítricos, pastagem e um pouco de mata ciliar restante.


Ao observar precipitação, escoamento superficial, evapotranspiração e variação do nível do aquífero, há uma década, o estudo já aponta caminhos. “O que já está latente, em 10 anos de estudo, é que o mecanismo mais importante na taxa de recarga do aquífero é a evapotranspiração. Isso aponta a quantidade de águas que as plantas utilizam para sua manutenção e desenvolvimento”.


Em área de pastagem, as plantas de menor porte utilizam menos água para se desenvolver. Mas áreas com plantas maiores, por óbvio, necessitam de mais água para se manter. Em particular, o professor ressalva para não “satanizar” a cultura de eucalipto (leia mais ao lado), embora o crescimento maior da planta e a raiz mais profunda exijam mais água. “Mas esse consumo maior não é o suficiente para marginalizar o eucalipto. Uma área de pastagem tem evapotranspiração de 800 a 900 milímetros e uma área de eucalipto tem entre 900 e 1.000 milímetros. Consome mais água, mas não em tamanha diferença numérica”.


Mas a observação é, que em matéria de evapotranspiração por área, 100 milímetros formam uma grande diferença em período de estiagem, como acontece neste momento. “O que temos observado neste período mais seco é uma redução de volume de precipitação de 200 a 300 milímetros por ano em relação a média histórica. Mas como a média histórica é de 1.500 milímetros por ano nessa bacia. Veja que isso dá só de 15% a 20%, mas dá esse impacto todo que nós estamos percebendo. O sistema é bastante sensível”, menciona.


A média não tem se alterado muito na bacia do Ribeirão da Onça. Mas a redução em 15% é sentida. “Tivemos anos com 300 milímetros a mais e outros com isso a menos. Mas 10 anos é um período curto em matéria de ciclo hidrológico. Os estudos exigem pelo menos 30 anos para verificar tendência. Mas nesses anos aconteceu uma seca mais grave, que não tinha ocorrido ainda. Do ponto de vista de períodos hidrológicos, seriam 25, 50 ou 100 anos para um evento dessa gravidade acontecer novamente. O período de retorno é muito longo”.     


Eucalipto e mata


O professor  Edson Wendland pondera para que não se “satanize” a plantação de eucalipto. “Há crítica muito grande ao eucalipto, por ser planta de porte. Mas se você pensar no cerradão, a evapotranspiração vai ser muito parecida. Se a precipitação é a chave, se você observa uma tendência de precipitação, um caminho seria escolher culturas com menor porte que consomem menos água por evapotranspiração”.


De outro lado, a mata ciliar na área de captação de água ajuda a proteger o solo e o manancial. “Se você tem o trecho setorizado de captação de água com mata ciliar, você combate tanto a desagregação quanto a compactação nesta área, o que é fundamental. E aí você tem a ação de formigas e minhocas nessa área, com o solo bem mais protegido com a mata ciliar”, lembra o pesquisador Edson Wendland.

Nélson Gonçalves

A água da chuva que escorre pelas calhas, nas residências, não pode mais ser desperdiçada

 

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