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Imagem atual de um dos primeiros corredores comerciais de Bauru, que abriga ruas como a Coronel Alves Seabra, Floresta e São Paulo |
Samantha Ciuffa |
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José Roberto Negrato nasceu e cresceu na região, conta as suas histórias e as herdadas do pai Victório Negrato |
A região da Baixada do Silvino (na Vila Alves Seabra) é o trecho de origem de parte da cidade. Uma localidade de grande valor histórico, que foi por muito tempo a única entrada e saída de Bauru (por meio da rua Floresta). Segundo historiadores, os primeiros tropeiros chegaram por este caminho. Jardineiras vindas da zona rural também tinham ali o ponto de chegada e partida.
Como não podia deixar de ser, o lugar foi se tornando um dos principais corredores comerciais do município. Uma verdadeira efervescência comercial despontou ali e assim permaneceu por muitas décadas. Havia de tudo um pouco: supermercados, posto de combustíveis, farmácias, muitos bares, lojas diversas... e até uma fábrica de refrigerantes, o Guaraná King.
Com o tempo, o comércio foi declinando. A região também sofreu com muitas enchentes. Mas ainda abriga moradores e comerciantes dos tempos áureos do comércio, que recebia um vai e vem diário de consumidores da zona urbana e rural. Pessoas cheias de histórias para contar.
Uma delas é José Roberto Negrato, 58 anos, que carrega um sobrenome muito conhecido por ali. Ele nasceu e cresceu na Baixada, na rua Comendador Leite. Tem as suas próprias histórias para contar, mas boa parte das que coleciona e faz questão de repassar foram contadas pelo pai, Victório Negrato, que faleceu há poucos anos aos 92 anos de idade.
A família mantém a Casa Negrato na quadra 2 da rua Coronel Alves Seabra desde 1968, quando o irmão Ademir Negrato, também já falecido, abriu o negócio. “Meu pai veio da Itália para o Brasil em 1924. Em Bauru, ele chegou em 1932. Morou na Vila Formosa e, em 1942, casou-se e veio morar aqui”, recorda.
Porta de entrada
José Roberto ouvia do pai, por exemplo, sobre a passagem da comitiva do então presidente Getúlio Vargas, em 1938. “A rua Floresta era a porta de entrada de Bauru, e Getúlio passou pela rua Alves Seabra. Meu pai viu. Foi um fato marcante para ele”.
Sobre o comércio, o entrevistado faz questão de frisar o agito que a década de 1960 representou na Baixada do Silvino. “Bauru fervia. Mas era um comércio diferente e é gostoso contar. Os moradores da zona rural, principalmente, trocavam frangos, leitões e outros produtos da criação deles por sapatos e outras mercadorias do comércio”.
Segundo ele, havia até um estacionamento para cavalos na Alves Seabra. Pagava-se um valor combinado e o cavalo tinha sombra e água fresca enquanto esperava o seu cavaleiro.
“Em 1974, eu andei de canoa na enchente. Também vi boiadas estourarem na rua movimentada e entrar nas lojas. Era um Deus nos acuda. Eu era engraxate e vivia no meio do fervo. Até saci o povo via por aqui”.
O comerciante conta com nostalgia e alegria as suas histórias, ele grifa que viu a modernidade chegar. Viu a Nações surgir, a rodoviária ser construída, o transito ficar rápido e o comércio diminuir.
Apelido
Por ser geograficamente um dos pontos mais baixos da cidade, a localidade recebe as águas dos rios que banham o município, afluentes do Rio Bauru, assim com o próprio ribeirão em questão, na Nuno de Assis. Portanto, o apelido “baixada”.
Já Silvino refere-se a um comerciante português, Silvino Ferreira, que se instalou no comércio do lugar na década de 1930, quando Bauru já se deparava com o progresso. Sendo assim, o lugar foi batizado.
Família de Silvino ainda sonha com homenagem
O comerciante português Silvino Ferreira teria se instalado na Baixada na década de 1930
Malavolta Jr. |
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Aos 81 anos, Oswaldo Bertucci Ferreria, o Vadico, espera para ver o nome do pai Silvino Ferreira eternizado em Bauru |
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Na foto, Silvino Ferreira, o comerciante que “batizou” a Baixada mais conhecida de Bauru |
Embora tenha “batizado” parte da região onde Bauru começou a se desenvolver, o comerciante Silvino Ferreira não teve o seu nome eternizado em ruas, avenidas, bairros ou qualquer outro elemento urbano da cidade. Fato que entristece a família, que ainda tem esperança de ver o patriarca ser homenageado.
Em junho de 2010, o JC fez uma reportagem especial sobre o assunto com a família. Seis anos se passaram e nada mudou. “Até agora nada de homenagem. Tínhamos esperança de que batizassem ao menos aquela rotatória nova da Nações Norte, mas nada. Minha família até se propôs a cuidar do trecho que levasse o nome do meu pai. Mas ainda não tivemos essa alegria”, lamenta o filho de Silvino, Oswaldo Bertucci Ferreria, o Vadico, hoje com 81 anos.
Segundo Vadico, o pai sempre foi um comerciante popular e cheio de amigos. Nascido em Portugal, Silvino Ferreira se estabeleceu na região na década de 1930. Inicialmente teve bar, depois empório, lenhadora, até chegar ao conhecido posto de combustíveis. Seus negócios sempre foram abertos no mesmo local. “Ele vendeu muita madeira para a Noroeste, por exemplo”, conta.
Morador da quadra 3 da Coronel Alves Seabra, Vadico nasceu e cresceu na Baixada do Silvino. Assim como o pai, foi comerciante. E, assim como ele, os filhos também vivem do comércio. “E sempre na mesma região. Nunca saímos daqui, seja para morar ou trabalhar. Daqui vimos todas as mudanças ao longo das décadas”, narra.
Vadico viu, por exemplo, as casas de secos e molhados e os armazéns de cereais darem lugar a supermercados grandes, como o Confiança, que hoje tem uma das lojas na região. “No próprio Confiança há reprodução de fotos antigas do comércio daqui, em outros tempos”.
Beira Rio
Vadico foi dono do famoso supermercado Beira Rio, na esquina da Nações Unidas com a rua Floresta, durante 23 anos. Endereço que hoje abriga uma igreja evangélica.
“As lembranças são muitas, viu. Só para citar uma, o pessoal da zona rural trazia seus produtos para vender no comércio daqui, como galinhas e frutos das plantações. Até hoje essas ruas são conhecidas com a Baixada do Silvino. Não entendemos porque meu pai ainda não teve o seu nome eternizado na cidade”, volta a cobrar.
Baixada mantém moradores ‘fiéis’
Malavolta Jr. |
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“É tanta história que a Baixada toda devia ser tombada como patrimônio histórico de Bauru”, opina o comerciante Osmar Donizetti Campidelli Rocha, o Tico, que vive por lá desde que nasceu |
O tempo passou e, com ele, muitas mudanças chegaram até a Baixada do Silvino. Muitos comerciantes e moradores deixaram seus imóveis na época das grandes enchentes, por exemplo. Entretanto, não é difícil encontrar moradores “fiéis” à região. Que ali nasceram ou se instalaram para não mais sair.
O comerciante Osmar Donizetti Campidelli Rocha vive no local desde que nasceu, há 44 anos. Há 17 deles é dono de uma loja de material de construção na esquina da quadra 2 da Coronel Alves Seabra. “Já morei na quadra 1 da mesma rua, na rua Boa Esperança e, agora, vivo na rua São Paulo. Ou seja, nunca saí daqui, criei raízes”, comenta.
Osmar é conhecido por todos por ali como Tico. E, é claro, tem muito a falar sobre o lugar onde nasceu. A sua vizinhança viu a avenida Nuno de Assis ser criada e a rodoviária surgir. Também passou pelas enchentes mais lembradas e trágicas de Bauru: “Quando eu tinha uns 8 anos, fiquei ilhado em casa e fui resgatado pelos bombeiros. Eu morava na quadra 1 da Alves Seabra”, recorda.
Segundo Tico, naquela época, a água tomava conta de tudo. “Nas minhas lembranças, a última grande cheia ocorreu por aqui em 1982, e levou a vida de uma motociclista. Nem a moto acharam. É tanta história que a Baixada toda devia ser tombada como patrimônio histórico de Bauru”, opina.
Desde 1943
Samantha Ciuffa |
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Yoshimitsu Kakuda, 92 anos, está na região desde 1943 |
“Seo” Yoshimitsu Kakuda, 92 anos, não nasceu na região, mas vive lá desde 1943, quando mudou-se com a família. Casou-se, teve filhos, netos e bisnetos, mas o comerciante nunca mudou-se da famosa localidade.
“Seo” Yoshimitsu é um dos poucos moradores da região central da Baixada. Ele vive na quadra 2 da Alves Seabra e é do tempo em que se pescava no Ribeirão das Flores.
“Minha família tinha uma oficina e um restaurante. Lembro-me do posto do Silvino, cuja enchente de 1994 acabou com tudo. Hoje a grande movimentação por aqui é de carros, mas no passado era de pessoas. Era gente para lá e para cá o tempo todo”, recorda.
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Região abriga muitas histórias e lendas
A Baixada do Silvino também foi palco de uma famosa tocaia que deu fim à vida do coronel Azarias Leite, em 1910
JC Imagens |
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Outro aspecto da Baixada, visto da quadra 2 da rua Araújo Leite |
Cada morador e cada comerciante antigo da região da Baixada do Silvino tem a sua história para contar. Quem não as viveu, ouviu alguém contar. Algumas delas ficaram eternizadas e fazem parte, inclusive, da história do município. Uma delas revela a acirrada e mortal disputa política do início de Bauru.
Coronel da Guarda Nacional, o mineiro Azarias Ferreira Leite dominou a política bauruense até 1910, com grande influência na estadual. Foi presidente da Câmara entre 1897/1898, 1906/1907 e 1908/1910. Em 1909, Azarias apoiou a eleição de Hermes da Fonseca para a presidência da República. Gerson França, político rival, apoiou Rui Barbosa.
Em uma discussão entre José Lopes de Souza e o prefeito Álvaro de Sá, hermista amigo de Azarias, Lopes lhe deu forte bengalada, motivo para iniciar um tiroteio entre os dois grupos. Souza foi alvejado com seis tiros e não morreu. Sá refugiou-se no Hotel Dix e dali foi levado à fazenda Val de Palmas (do sogro), e da fazenda para o Rio de Janeiro.
Em 1910, Bauru pleiteava a criação de sua comarca e políticos ameaçaram Azarias de morte. Em julho, ele mandou uma carta para o companheiro Álvaro de Sá, no Rio de Janeiro, dizendo que estava sendo ameaçado de morte por causa da criação da Comarca de Bauru.
Tocaia
Em 19 de outubro de 1910, Azarias saiu cedo de sua Fazenda Aureópolis para inaugurar o Banco de Custeio Rural e sofreu uma tocaia nas imediações do Rio Bauru, na região da Baixada do Silvino. Quando o político, montado em seu cavalo, atravessou o Rio Bauru, levou três tiros e morreu.
Promulgada pelo governador Albuquerque Lins em 16 de dezembro de 1910, a Lei estadual nº 1.225 criou a Comarca de Bauru, sem transferir a de Agudos.
As histórias que o povo conta
Samantha Ciuffa |
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Nascido e criado na região, o aposentado Nivaldo Salcedo Manduca traz na memória muitas histórias sobre a Baixada do Silvino; na foto, ele está com a filha com a filha Kethelin Yasmin Silva Salcedo, no cruzamento das ruas Floresta e Coronel Alves Seabra |
Há quem viva na região há muitos anos e que jure de pés juntos já ter visto sacis ou, pelo menos, diz conhecer alguém quem tenha uma boa história para contar sobre o fantástico personagem do folclore brasileiro.
Por ali, eles viviam aos montes há algumas décadas. Um bando de arruaceiros que se divertia e assustava os moradores. Ao menos é o que garante o aposentado Nivaldo Salcedo Manduca, de 65 anos, nascido e criado na região da Baixada do Silvino, lá pelos lados da rua Vicente Barbugiani.
“Nessa rua eu vi sacis aos montes. E não foi uma nem duas vezes. Foram muitas. Era uma rua de terra, como um estradão com eucaliptos e uma mina d’água. Havia uma cerca de arame bem comprida e a gente via a sacizada fazendo a sua típica bagunça. Éramos moleques, e a gente mexia com eles e saía correndo”, conta o aposentado.
Nivaldo narra que caçava vagalumes à noite com as outras crianças às margens do Córrego das Flores, uma atividade comum às crianças daquela época. E, sobre as cercas de arame, lá estavam os danados fazendo suas travessuras.
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Azarias Leite (que dá nome a uma das ruas mais conhecidas de Bauru) foi alvo de uma tocaia política na região da Baixada do Silvino, em 1910 |
Cachoeira
Tão inacreditável quando os sacis podem parecer para muitos, é imaginar que na avenida Moussa Tobias havia uma cachoeira. “Mas tinha. Infelizmente acabaram com tudo. A gente nadava lá. E também havia uma mina com a melhor água de Bauru, na região do Jardim Godoy. Meu pai canalizava a água com bambu para o pessoal não precisar andar muito para pegar água”.
Heroísmo
Mas nem todas as lembranças do morador são boas. Ele recorda que, por volta de 1958/1959, quando ainda era um menino e engraxava na região, um homem morreu esmagado pela carga de um caminhão pelos caminhos da baixada.
“Mas salvou muitas vidas antes de morrer. Um caminhão vinha desgovernado carregando lenha na direção de muitas pessoas.
Eu atravessava uma ponte que tinha por aqui quando ele gritou. E saí correndo. Mas caiu tudo sobre ele, que não resistiu. Eu me emociono quando lembro”, finaliza.
‘Casa dos Pioneiros’
Do outro lado da Nuno de Assis e do Rio Bauru, a quadra 2 da rua Araújo Leite abriga parte da história do município com remanescentes dos pioneiros de Bauru, uma residência tombada pelo patrimônio público, mas prestes a ruir. A construção do século passado carrega vasto valor histórico e cultural e é conhecida como “Casa dos Pioneiros”. Construído nos primórdios de Bauru, o imóvel “carrega” testemunhos do primeiro eixo urbano de Bauru.
A ideia é que o local seja reconstruído e utilizado para fins culturais. Na fachada, já há alguns anos, há uma placa que diz “Futuras Instalações da Casa dos Pioneiros”. Porém, até o momento, as obras não tiveram início.
A reportagem procurou a Prefeitura Municipal para falar sobre o assunto, por meio da assessoria de comunicação, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta.
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A “Casa dos Pioneiros” fica na quadra 2 da rua Araújo Leite |
Donos
Há quem aponte que o imóvel pertencia à família Dix. João Henrique Dix foi o primeiro “morador” do Cemitério da Saudade, o mais antigo de Bauru. Segundo memorialistas, ele doou o terreno para a construção do cemitério, inaugurado em 1908. Um dia depois da solenidade de inauguração, ele teria cometido suicídio com um tiro no coração para ser o primeiro a ser sepultado no local. Ainda hoje, a história desperta a curiosidade e, todos os anos, visitantes procuram pelo túmulo.