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Entrevista da semana: Irineu Nje"a

03/12/2017 | Tempo de leitura: 6 min
Cinthia Milanez

Malavolta Jr.
Filho de indígena, Irineu até lançou livro para divulgar a cultura

Um ritual marcou o início da dedicação de Irineu Nje’a à cultura indígena. Nascido em Lins, mas erradicado em Avaí, ele deixou tudo de lado para concentrar todo o seu tempo na Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena (Araci), situada na Estação Cultural (antiga Estação Ferroviária), em Bauru.

Quando completou 5 anos, os seus pais se separaram e Irineu se mudou para Bauru, com a mãe, que não é indígena, e os irmãos. Porém, aos 10 anos, reencontrou o seu avô, Balbino Sebastião Terena, na aldeia Kopenoti, na Terra Indígena de Araribá, em Avaí, onde participou de uma Lacrimosa, cerimônia que representa a felicidade diante do encontro do que estava perdido.

Formado em história e pós-graduado em antropologia pela Universidade do Sagrado Coração (USC), o indígena preside a Araci e representa o seu povo na Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI) e na Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (Coneei), ambas vinculadas ao Ministério da Educação (MEC).

A seguir, Irineu fala sobre o contato com a aldeia, a vida na cidade grande e as principais demandas dos indígenas.

Jornal da Cidade - Você nasceu na aldeia Kopenoti, em Avaí?

Irineu Nje’a - Não. Eu nasci em Lins, porque minha mãe, Nina Terena, foi visitar uns parentes por lá, mas passei o começo da infância na aldeia, em Avaí. Quando completei 5 anos, os
meus pais se separaram e vim morar em Bauru, com a minha mãe, que não é indígena, e os meus irmãos, Douglas e Vanda Terena. Porém, aos 10 anos, reencontrei o meu finado avô, Balbino Sebastião Terena, na aldeia Kopenoti, na Terra Indígena de Araribá, em Avaí. Na época, houve um ritual muito bonito, conhecido como Lacrimosa, na qual meu avô chorou muito, falando um idioma que eu mal entendia. Segundo o meu pai, o ritual representa a felicidade diante do encontro do que estava perdido. Só fui entender o significado de tudo isso depois de grande. Inclusive, a família do meu avô foi uma das primeiras a chegar a Avaí,
em 1932, vinda do Mato Grosso. Meu avô veio primeiro e, em seguida, voltou para buscar a minha avó, Clarice Lulu, os meus tios, Albino, Tito, Araci e Florença, além do meu pai, Cassiano.

JC - E como era a vida longe da aldeia?

Irineu - Eu comecei a trabalhar muito cedo, aos 10 anos. Na época, integrei o Consórcio Intermunicipal de Promoção Social (Cips) e varria as ruas de Bauru. Foi nesse momento
que reencontrei a cultura indígena, porque o meu avô veio me buscar para conhecer a aldeia. Lembro que nós fomos de trem até Avaí e tivemos de andar muito até chegar à Kopenoti, onde não havia sequer energia elétrica e assisti ao ensaio da Kipaé, dança típica do meu povo. Inclusive, a minha mãe apoiou bastante essa reaproximação. Desde então, mantive os vínculos com a aldeia, porém, continuei morando na cidade.

JC - O seu pai ainda é vivo? Vive na aldeia?

Irineu - Sim. Atualmente, ele é ancião da aldeia e receberá uma homenagem no próximo dia 10. O meu pai sempre se dedicou ao esporte, especificamente, o futebol, única coisa que trazia diversão para a aldeia. Diante disso, pretendemos comprar equipamentos novos, como bolas, apitos e cartões, para presenteá-lo. A ideia é, ainda, organizar um jogo em sua homenagem, dentro da aldeia.

JC - Você lidera uma associação de valorização da cultura indígena, não?

Irineu - Sou formado em história e pós-graduado em antropologia pela USC. Todavia,  abdiquei de dar aula e deixei de fazer muitas outras coisas para me dedicar à Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena (Araci). Desde 2003, eu venho desenvolvendo um trabalho de valorização da cultura indígena e a associação, fundada em 2014, surgiu com esse objetivo. Deu tão certo que, atualmente, a entidade integra a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), MEC, além da Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (Coneei).

JC - Então, a criação da Araci abriu muitas portas?

Irineu - Sim. Em Bauru, fizemos uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação e promovemos cursos de capacitação dos professores da rede em relação à cultura indígena. Além disso, o apoio da Secretaria Municipal de Cultura, através do Programa de Estímulo à Cultura, foi crucial para o lançamento do meu livro, intitulado “Mito de origem do povo terena: história ilustrada da cultura terena”. Creio que fui agraciado pelos meus ancestrais, porque consegui escrever a história do meu povo.

JC - Já que falou em educação, a cultura indígena é abordada de que forma nas escolas?

Irineu - Muitos professores preferem trabalhar o Coelhinho da Páscoa do que a questão indígena. Por um lado, entendo os meus colegas educadores, que vivem atarefados. O curso que promovemos junto à Secretaria Municipal de Educação tenta entregar um material quase pronto para eles desenvolverem em sala de aula. Às vezes, quando se trabalha a questão indígena, o faz sem a identidade. Qual povo você está trabalhando? Terena? Guarani? Kaingang? Só no Brasil, nós temos 305 etnias, que falam 274 línguas diferentes. Os professores precisam ter uma orientação, um norte. A Araci faz isso, com o propósito de diminuir o preconceito, através da difusão da cultura dos povos indígenas. Afinal, para respeitar, tem de conhecer.

JC - Na sua opinião, a tecnologia descaracteriza a cultura indígena?

Irineu - Hoje, quando o indígena usa o celular, a tecnologia em geral, surgem os comentários maldosos. Na verdade, a sociedade evoluiu e o indígena também tem o direito de usufruir
dessa tecnologia, que veio para nos ajudar. Hoje, internautas de 30 países têm acesso ao blog da Araci, acompanham o nosso trabalho. Como eu poderia disseminar o movimento indígena sem a tecnologia?

JC - Por que você não gosta de usar a palavra ‘índio’?

Irineu - Logo que comecei a atuar em prol da valorização da cultura indígena, fui até a Fundação Nacional do Índio (Funai) e alguém falou que havia um índio esperando, fato que me arrepiou dos pés à cabeça. Me incomodou, foi como se tirassem a minha identidade. Depois, entendi que a palavra remete ao Rio Indo; à Cristóvão Colombo; à Índia; aos povos que, na Idade Média, viviam longe dos centros urbanos; e ao metal mais vagabundo da tabela periódica. Não sou nada disso. Já o termo “indígena” tem outra etimologia, ou seja, significa “aquele que é nascido na América do Sul”. Eu sou da América. O meu povo veio da América. Logo, prefiro utilizar esta palavra.

JC - Por fim, o que você acha que ainda falta ser feito aos povos indígenas?

Irineu - Nós temos terras, mas não programas que ajudem a cultivá-las. Muitas famílias saem da Terra Indígena de Araribá para colher maçã, no Sul do País. Chegam a ficar um ou dois meses, longe da família, para ganhar um dinheiro, sendo que eles têm terras. Além disso, antes da presidente Dilma Rousseff sair, deixou diversos documentos para demarcação de terras, que foram engavetados pelo seu sucessor, Michel Temer. As terras são nossas de direito, nós estávamos nelas antes da chegada dos colonizadores.

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