Pão insosso. Nascido a cada dia do suor sofrido do nosso rosto. Pão difícil. Uma semana inteira de labuta esperando o domingo chegar. Pão amargo. Aposentadoria distante no moroso calendário do esperar. Esse, vamos chamá-lo assim, é o trabalho ganha-pão. Resume-se a quase nada: um correr atrás do feijão porque, no final do mês, existem contas a pagar. Um meio de vida, uma forma de fazer e receber. Apenas um jeito de sobreviver.
Viver assim é triste. Há nisso tudo uma falta, um enorme vazio. Falta a esse ganha-pão a consciência de um sentido maior: fazer pelo outro o melhor que possamos fazer. Seja o que for que ele nos peça, o importante é que o façamos da melhor maneira possível. Para tanto, entram nessa conta a vontade de servir e o sorriso acolhedor. Trabalho assim é gratificante. Nada pior do que uma cara fechada, atrás de um balcão, ruminando: "em que posso servi-lo?" Claro que não pode.
Quando o trabalho é só ganha-pão, ele é feito para atender às necessidades de fora. Há, contudo, um trabalho que nasce para atender a um grito de dentro, uma necessidade que mora no fundo da gente. É o que ocorre quando uma energia criadora sufocada não mais quer ficar. Remunerado ou não, esse é o trabalho-vocação. Quanto mais o fazemos, maior é a fome de fazê-lo. Terminado, vem a pressa de recomeçá-lo. O trabalho vocacionado é exatamente assim: nada tem do pão amargo de cada dia, mas do pão alegre que a alma cria.
Por nascer de um chamado interior, esse trabalho vocacionado imprime na coisa feita muito do que somos. Saímos de nós para na coisa criada ficar. É personalíssimo, com nenhum outro se confunde e, por isso, criador. Em Ferrageiro de Carmona, João Cabral de Mello Neto dá voz a esse profissional que recusa trabalhar com ferro fundido, porque pronto nasce da forma, não nasce da mão: "Ferro fundido é sem luta é derramá-lo na forma. Não há nele a queda de braço e o cara a cara de uma forja". Daí, o ferrageiro preferir o ferro forjado: "Só trabalho com ferro forjado que é quando se trabalha o ferro; então corpo a corpo com ele, domo-o, dobro-o até o onde quero." Assim trabalha o poeta. Assim trabalham todos os profissionais vocacionados: colocam-se inteiros naquilo que fazem.
Fernando Pessoa ganhava o pão como tradutor de cartas comerciais (nada poéticas evidentemente). T. S. Eliot, como bancário. Machado e Drummond, como funcionários públicos. Nada os impediu, contudo, de acharem em outro trabalho uma especial razão de viver. Sem qualquer pretensão de qualidade ou de reconhecimento público, qualquer um de nós sempre tem algo a dizer. Coisa só nossa, coisa de dentro pedindo para sair. A tinta da caneta, pode ser a do pincel também, as teclas do piano, podem ser as cordas do violão, as linhas do crochê, também as do bordado, a lente da câmera, o desenho dos tijolos, as plantas do jardim, o bolo inconfundível, qualquer coisa, enfim, pode ser linguagem criativa, trabalho realizador. Daí a urgência de fazê-lo.
Pensando na aridez da vida, principalmente quando não se cuida de regá-la, lembrei-me de Drummond: "Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar."
Em tão boa companhia, todos nós precisamos desse tempinho de criar.
O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais.