Enquanto não encontramos o belo no presente nem o avistamos em um horizonte próximo, recorramos ao passado das artes, das belas artes. É uma forma de resistir. Com a flor, com amor, com afeto, com Rosa e Pixinguinha/Otávio de Souza.
"Tu és, divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente
Aqui nesse ambiente de luz
Formada numa tela deslumbrante e bela
O teu coração junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz
Do arfante peito seu
Tu és a forma ideal
Estátua magistral oh alma perenal
Do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor
Em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela
És mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza
Perdão, se ouso confessar-te
Eu hei de sempre amar-te
Oh flor meu peito não resiste
Oh meu Deus o quanto é triste
A incerteza de um amor
Que mais me faz penar em esperar
Em conduzir-te um dia
Ao pé do altar
Jurar, aos pés do onipotente
Em preces comoventes de dor
E receber a unção da tua gratidão
Depois de remir meus desejos
Em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer
De todo fenecer"
João Carrara e Hilda Campos cantaram essa declaração de amor à mulher, sábado da semana passada, no Avenue Pub, e a maestrina Sônia Berriel então me sugeriu uma abordagem aqui, enquanto ouvíamos encantados.
A letra reproduzida no papel é infinitamente menos tocante do que na palavra cantada de João e musicada por Hilda. Mas, ainda assim, repare que linda composição, que singeleza envolvente, um bálsamo aos nossos ouvidos cansados de tanto ruído inútil e inconsequente.
"Tu és, divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada..."
Com meus amigos Cláudio Ricci e João Oliveira comentávamos, naquela noite de MPB, na mesma mesa de bar, entre umas biritas e outras, que estamos, teimosamente, esperando a volta das grandes letras, das melodias que falam por si e nos fazem levitar de tanta emoção e paixão, hoje em dia sufocadas "pela feia fumaça que sobe apagando as estrelas..."
Não vemos mais surgir poetas e os deuses da música estão de cara amarrada conosco. Os tímpanos da multidão são obrigados a suportar pancadas nos instrumentos musicais e berros histriônicos ao microfone, salvo algumas exceções. Até quando?
"Ah, você vive buscando a solução no saudosismo e isso não move o mundo...", podem me dizer, como já disseram. Sim, mas a força da vida é a soma do que produzimos em todas as épocas. Além do mais, não estou preocupado, neste instante, em fazer revolução de nenhuma espécie a não ser compartilhar um pouco da face singela da natureza humana. Já é uma grande coisa.
Platão sugeriu que a música tem o poder de produzir estados emocionais no ouvinte e gerar/provocar pensamentos. Estados emocionais, no mínimo, mexem com a letargia, fazem bem de alguma forma, mesmo quando ouvimos uma música triste. Ou que seja apenas pelo prazer ocioso da sonoridade, como dizia Aristóteles, discípulo de Platão. Afinal, a vida não é só reflexão.
Apesar de evocar emoções, a música não substitui, evidentemente, as respostas comportamentais da vida real. Não podemos reagir a tudo cantando trechos de músicas, mas podemos seguir "caminhando e cantando e seguindo a canção..."
"Por que não, por que não?..."
Se "...uma canção me consola."