Turismo

Pescaria no mar - 1

JCNET
| Tempo de leitura: 12 min

Fazendo compras em um supermercado da cidade, encontrei-me com Adriano, servidor aposentado do DAE, o qual, repetindo manifestação anterior num encontro igualmente casual, disse-me continuar lendo meus textos no JC, ultimamente sobre pescarias e, nesse propósito, desejava saber se alguma vez tinha pescado no mar. Redarguindo com resposta afirmativa, sugeriu que escrevesse uma história focalizada nesse tema, o que de certa forma deixei prometido. Cumprir alguma coisa prometida de certa forma, é o mesmo que garantir sem assumir o compromisso da palavra. A metade da promessa ficou ali no supermercado e a outra parte dependia da boa vontade de minha memória recordar sem hiatos os fatos pretéritos, pois as duas vezes que estive pescando no mar foi na companhia de Darci Bighetti, pessoa que não está mais presente entre nós e que seria a única a auxiliar-me rememorar os fatos interessantes ou curiosos presenciados nas incursões ao mar, nos anos 90, e que inevitavelmente eles acontecem em toda pescaria. Darci construiu um confortável rancho em Cananéia, litoral sul, na beira de um canal que desembocava no mar, cerca de 1 k. da cabana. Para chegar até aquela cidade litorânea a distância mais curta estava numa estrada de pista única, ligando a cidade de Sorocaba (via Castelo Branco) com Iguape (via Régis Bittencourt), serpenteando a serra de Paranapiacaba.

Encontrava-me com Darci quase todos os dias em virtude da proximidade das residências aqui em Bauru. Ele fazia parte do grupo de amigos que eu pertencia e também pescava no rio Paraguai. Certa vez falou-me: vamos pescar no mar uns 3 ou 4 dias? Topei.

A primeira vez que transpus toda a serra de Paranapiacaba, fiquei extasiado com as flores nativas rastejando nos dois lados da estrada. Já conhecia esse mimo da natureza em outro lugar, porém em pequena quantidade e intercalado por grama ou pedra. O que estava vendo no espaço onde era o acostamento da rodovia, destacadamente no trecho entre Ibiúna e Tapiraí, cidadezinha construída no alto da serra de Paranapiacaba, era o acostadouro, quase sem interrupção coberto de flores de múltiplas cores, levando a imaginação que os veículos transitavam sobre um longo tapete negro estendido num campo florido. A floresta da serra de Paranapiacaba marca o território remanescente da mata atlântica naquela região, e para que as pessoas não se sintam atraídas somente pelas flores do acostamento da estrada e, a elas, com exclusividade devotem sua admiração, o que, fosse só isso, já seria um festival de beleza ímpar, também participavam daquela majestosa exposição colorida, as flores das copas dos manacás da serra, árvores típicas da serra litorânea que desabrochavam suas flores nas cores branco, lilás e roxo, substituindo-se por essa ordem no mesmo dia. Lembra a mudança das cores do camaleão quando deseja camuflar-se. Aquele deslumbramento anunciava a estação da primavera enfeitando a serra atlântica, de tal arte que o cenário de cores não deixava de ser um privilégio para os circundantes, aliás, um raro privilégio porque a vida dessas flores é efêmera, dura poucas semanas, mas o panorama colorido é renovado na época e ano seguinte. Sem falha.

Chegando ao destino, Cananéia, no esconder do sol, Darci foi atrás de piloteiro, combustível e isca para a pescaria do dia seguinte, enquanto me coube dar uma arrumada na casa e preparar o jantar. O sono foi repousador graças as janelas do rancho possuírem tela para vedar a entrada de pernilongos, insetos que surgem em grande volume no final do dia, sedentos por uma boa dose de sangue humano. O pernilongo tem duas funções nada glorificantes: enquanto se sacia do sangue, transmite pelo mesmo canudinho a doença que carrega. O pernilongo do pantanal ataca durante o dia e a noite. São vinte e quatro horas a procura de sangue humano. Já o pernilongo do litoral dorme durante o dia e inferniza a vida das pessoas a noite toda. Essa rotineira atividade do inseto lembra a anedota da pernilonga mãe advertindo seus filhotes que iam pela primeira vez atacar os participantes de uma festinha de aniversário. Disse a pernilonga que se afastassem das pessoas no momento em que cantassem parabéns...

No dia seguinte, o primeiro da pescaria, depois do café da manhã o piloteiro de nome Jânio chegou pelo canal com a lancha de 17 pés, motor central, construída de alumínio, com tudo preparado para a pescaria de robalo, peixe considerado nobre da cozinha comandada pelos chefs que ultimamente alastram-se pelos canais de televisão ensinando aos berros seus discípulos. Os robalos povoavam nos chamados "cercados", uma cerca de bambu com cem metros de comprimento mais ou menos, erguida da praia em direção ao mar, em linha reta fechando a passagem dos peixes. Uma espécie de barricada construída de bambu. Eles encontravam o alimento vivo querendo atravessar o "cercado" pelo espaço entre os palanques de bambu, porém, sem conseguir fazê-lo, acabavam se expondo como refeição fácil para os peixes. Havia vários "cercados" num determinado lugar, armados por pescadores profissionais, os quais, se presentes, não permitiriam que os turistas se aproximassem porque se julgavam donos da artimanha montada como chamariz dos robalos. Por sorte, não havia ninguém no lugar da pesca e nas imediações para atrapalhar nossa incursão em busca do delicioso peixe. A lancha foi poitada a uns 20 m. de um "cercado" e, munidos de caniço de ponta fina, linha 25 Lb, anzol e chumbada pequenos e uma bóia de isopor com o tamanho e formato de pião, pintada de vermelho e presa na linha a 1m. do anzol iscado com camarão, passamos a fazer o arremesso do anzol para cair o mais próximo possível do "cercado". Minhas primeiras arremessadas não deram certo por falta de prática nessa modalidade de pescaria. Não conseguia, inicialmente, fazer o anzol quedar-se no lugar indicado pelo piloteiro. Era preciso que a isca ficasse quase rente ao "cercado" entre os robalos em alimentação. As vezes imprimia força demasiada no arremesso e o anzol caia do outro lado do "cercado" com a linha nele enroscada. Nesse caso, que foram inúmeros, passava o caniço ao piloteiro que sabia como livrar a linha presa no palanque de bambu sem deslocar o barco. Os primeiros lançamentos quase todos ridículos serviram de treinamento para os lançamentos certeiros e pausa do piloteiro que franzia o rosto em fisionomia de poucos amigos cada vez que tinha de retirar a linha do enrosco. Corrigidos os enganos, por fim, os lançamentos foram melhorando e atingindo o alvo perseguido, com fisgadas e saltos de robalos bem aprisionados no anzol artificioso. A pesca do robalo com bóia de isopor acima do anzol não dá margem de erro na fisgada do peixe porque a boia quando afunda, o peixe já está com o anzol preso na boca. A tarefa do pescador fica adstrita ao recolhimento da linha na carretilha do caniço. Usando o material de pesca com a ganância de encher a caixa de isopor de peixe, foram muitos os robalos aprisionados, porém, todos eles de tamanho padrão que aproximavam-se de 1 k. Os robalos maiores viviam longe da praia, no entorno de ilhas distantes dos "cercados" lugar que não cogitamos de pescar por falta de uma embarcação maior, adequada a pescaria em águas mais distantes e tormentosas, para a qual não estávamos preparados.

A captura do robalo por mim, Darci e Jânio, usando a bóia na linha, tornou-se enfadonha porque o peixe era fisgado sem necessidade do pescador sentir a movimentação da linha sinalizando que o peixe estava comendo a isca. Aliás, essa parte da pescaria em que o peixe arisco morde aos poucos a isca ao contrário do glutão que ataca a isca num único abocanhar, provavelmente ocorre porque ele suspeita que alguém está montando uma arataca para ele virar alimento e, desconfiado que corre perigo na oferta de refeição grátis, age com cautela. De outro lado, o peixe que come a isca aos poucos, faz revelar a habilidade do pescador em sentir o momento exato de erguer o caniço com firmeza para fisgada certeira. Qualquer erro de cálculo significa um peixe a menos recolhido. Resolvi retirar a bóia da linha para verificar se minha sensibilidade estava presente. Mas os erros cometidos nas puxadas do caniço no balançar da linha, seguramente informavam que melhor seria recolocar a bóia na linha se quisesse aumentar a quantidade de peixe recolhido ao barco. Provei a mim mesmo que estava com a sensibilidade em baixa!

Sugeri a mudança do lugar em que a lancha estava poitada para tentar a captura de outras espécies de peixe, argumentando que havíamos embarcado muitos robalos e se quiséssemos voltar para o rancho a pescaria já estava realizada somente na parte da manhã. Houve unanimidade na minha sugestão, pois só havia o voto de adesão do Darci já que o piloteiro não tem voz nem voto nas decisões dos turistas, segundo as regras da pescaria. A lancha foi conduzida para um lugar mais distante da costa marítima, no sopé de um morro conhecido como morro do bom abrigo. O que tinha o lugar de bonito, também tinha de perigoso. A principio causava nebulosa impressão a força do mar arrebentando as ondas contra as rochas do morro, mas sugeri a mudança do lugar em que a lancha foi poitada para tentar a captura de outras espécies de peixe, argumentando que havíamos embarcado muitos robalos e se quiséssemos voltar para o rancho a pescaria já estava realizada somente na parte da manhã, todavia, o temor causado pela estouro do mar nas pedras passou logo que a pescaria foi reiniciada com o barco poitado. O medo foi-se, mas seu lugar foi ocupado por um mal estar causado pelo sacolejar da lancha. Para amenizar a revolta do estômago foi necessário tomar "dramin", comprimido que tinha de ser ingerido a cada 3 horas para ser mantida a eficácia como remédio paliativo. A poita desceu até o fundo firmando-se numa vasta pedreira submersa. Disse o piloteiro que o lugar era habitado por badejos e que estávamos bem em cima do território deles. Peixe semelhante a esse é o abadejo que tem a preferência dos chilenos e argentinos porque desenvolve com facilidade na costa do oceano pacífico, banhando os dois territórios. O nosso badejo só perde para seu parente do oceano pacífico no tamanho. Lá o abadejo cresce mais, no entanto, o sabor da carne mantém a mesma identidade dos peixes. O piloteiro nos advertiu sobre a esperteza de nosso robalo, informando que eles moram nas locas da pedreira e delas saem ao avistarem a isca. Com a rapidez superior à seus semelhantes, em questão de segundo, o badejo deixa a loca, abocanha a isca e retorna à moradia. O pescador tem de fisgá-lo entre o engolir a isca e o retorno à local, por evidência, sem alguma visão desse movimento. Se pegá-lo nessa curtíssima oportunidade mas deixa-lo entrar na moradia, a linha do caniço faz um ele (L) e a dobra da linha começa a roçar na pedra a cada tentativa do pescador retira-lo empinando a vara numa ação de vaivém vertical até a linha esgarçar-se e romper-se.

A lancha segura pela poita no mesmo lugar balançava mais se estivesse livre, navegando, sem a amarra, entretando, não seria esse o modo apropriado de pescar robalo. Os caniços foram ativados e em pouco tempo começaram a confirmar a intuição do piloteiro. A lancha estava sobre o cardume robalo ao dar sinal de esticamento da linha com pouca força, porque mordiam levemente o camarão do anzol o que advertia não ser o exato momento de fisgar. A paciência do pescador estava a prova. Necessariamente teria de esperar um pouco mais, com acurada observação no movimento do peixe, desvelado pelo deslocamento da linha. A linha do meu caniço afundou várias vezes e a exceção de uma delas mostrou na sequência de golpes errados, fora do tempo, que faltava-me experiência na pesca do badejo. Consegui apenas uma vez, ser mais rápido que o peixe elevando a vara no momento exato, evitando que o badejo refugiasse na loca. Embarquei um badejo pequeno, pesando pouco mais de 1quilo, mas a ausência de destreza possibilitou muitos deles entrarem em suas locas, fazendo da linha o formato da letra L até romper-se de tanto esfregar na pedra. Darci, com mais experiência da pesca no mar, fisgou alguns badejos, não me recordo quantas unidades. Já o piloteiro Jânio deu uma aula de habilidade, embarcando 15 badejos e perdendo algumas fisgadas. Estava entardecendo e a caixa de isopor continha muitos robalos e badejos. Era preciso voltar para o rancho e desviscerar os peixes para leva-los ao congelamento porque seguiriam viagem para Bauru. Separados em dois lotes, um para cada pescador, seriam acomodados no congelador das residências para o suprimento das refeições por algum tempo. Afinal, não havia previsão de data para outra pescaria em Cananéia, pelo menos de minha parte e era preciso ter no congelador um estoque de peixe de primeira qualidade. Essa certeza certificava a garantia de quem o pescou.

Ficou combinado que no dia seguinte voltaríamos no morro bom abrigo para tentar a captura de mais badejos valendo-nos do aprendizado na pesca a performance do piloteiro Jânio. Na madrugada, entretando, o tempo mudou. Pela manhã o céu mostrou-se carregado de nuvens escuras que eram água a ser despejada a qualquer momento. Mesmo assim embarcamos na lancha e chegando na foz do canal já em pleno mar aberto, as impressionantes ondas pareciam advertir-nos do risco de prosseguir a jornada, desguarnecidos de meios a enfrentar com total desvantagem a fúria do mar revolto, o piloteiro resolveu por ele próprio voltar para o rancho, falando em tom de quem possuia voz e voto. Sua providência foi unânime, pois contou com a aprovação de Darci e da minha, receosos de avançar para a eternidade naquele cenário aterrorizante. Foi o último dia de pescaria e uma vez no rancho tratamos de arrumar as malas e tralhas para a viagem de volta no dia seguinte. De passagem novamente pela serra de paranapiacaba, as flores do acostamento da estrada observadas com os manacás da serra, todas ainda floridas no seu esplendor, saudavam aqueles que por ali passavam.

Alfredo Enéias Gonçalves d'abril, pescador aposentado

Comentários

Comentários