Entrevista da semana

Dedicação que resiste: sapateiro há 61 anos

Guilherme Tavares
| Tempo de leitura: 4 min

Não há logomarca, número de telefone ou letreiro na fachada. O toldo vermelho praticamente esconde o número 11-59 da rua Gerson França. Ainda assim, dentro da oficina mal há espaço, tamanha quantidade de pares de calçados, atulhados nas prateleiras, no balcão, sobre a bancada ou espalhados no chão. Outro forte indício da confiabilidade do trabalho é o entra e sai de clientes, que mal deixam Manoel Cirino Neto, 73 anos, falar sobre sua história à reportagem do JC. Ainda assim, entre notas de serviço e um cliente e outro, o sapateiro conseguiu contar parte dos seus 61 anos de profissão.

Remanescente de uma profissão com cada vez menos representantes, Cirino é guardião de um ofício que exige habilidade e conhecimento para deixar o cliente satisfeito. "Pessoal não quer saber de aprender mais a profissão. Hoje em dia, calçado ficou muito mais barato, a maioria é descartável", conta. Ainda assim, há exemplares de luxo, de grifes famosas, pares que chegam a R$ 2,5 mil ou bolsas de R$ 4 mil, os quais vale a pena consertar. No entanto, é o valor do apreço por uma peça que leva a maior parte dos clientes a encostar no balcão dele, independentemente de quanto custa no mercado.

Nascido em Conchas, é filho de José Cirino Alves e Mariana Ponce, ambos em memória. Cirino perdeu o pai ainda criança. Foi quando a família mudou-se para Botucatu, onde o tio Napoleão ajudaria a irmã e os sobrinhos a reconstruir a vida. Arranjou um emprego de sapateiro para Cirino, na época com 12 anos, para ajudar em casa.

Passou os primeiros anos como aprendiz, lapidando o ofício. Por volta dos 20 anos, trabalhou em uma fábrica de calçados, onde também aprendeu a dominar todas as etapas da linha de produção. A empresa entrou em declínio e, por indicação de um amigo, viu a oportunidade de comprar uma sapataria em Bauru. Assumiu o ponto e passou a tocar o próprio negócio. Pouco depois, mudou-se para o prédio da Gerson França, onde, nas contas dele, está há mais de 40 anos.

Além da oficina, em Bauru conheceu Elza Lúcia, 65 anos, com quem é casado há 47 anos. Do ofício tirou o sustento da família e conseguiu estudar os três filhos: Márcio Henrique, 45 anos, Marcos Renato, 39, e a caçula Thaís Carolina, 29 anos. É avô de Bruno, Leonardo e Maria Laura. Gosta de passar o tempo na TV vendo futebol. Seu coração é do Corinthians, mas assiste partidas de todos os times.

Cirino está aposentado, mas ainda nem cogita parar de trabalhar. "Vou até quando Deus quiser". O sapateiro contou um pouco da extensa trajetória. Confira.

Jornal da Cidade - Como começou no ofício de sapateiro?

Manoel Cirino Neto - Perdi meu pai muito novo. Com 12 anos nós mudamos para Botucatu, minha mãe tinha família lá. Um tio meu conseguiu emprego para mim em uma sapataria, comecei a aprender o ofício para ajudar em casa. Mas ganhava só uma gorjeta para ir na matinê de domingo. Só depois comecei a ganhar alguma coisa. Depois trabalhei uns dois anos em uma fábrica de calçados, também em Botucatu. Fazia todas as etapas da linha de produção. Mas a fábrica não andava muito bem das pernas e um amigo me falou que tinha uma sapataria à venda em Bauru. Aí fiquei com a oficina.

JC - Sempre insistiu na profissão ou chegou a exercer outra atividade?

Cirino - Eu fiz curso de desenho mecânico. Quando eu era moleque, meu sonho era ser piloto, então queria trabalhar com algo da área. Em Botucatu, tinha uma fábrica de aviões, a Aeronáutica Neiva (depois, Embraer). Fiz teste, mas eles queriam três anos de experiência em carteira, então não tinha como. Continuei como sapateiro e aí chega uma idade que você não vai mais trocar de profissão.

JC - O que mudou na sua atividade ao longo do tempo?

Cirino - Hoje sapato bom é sapato caro. Tudo ficou mais descartável. O material hoje é muito ruim, estraga rápido. O cliente traz, quer consertar, mas explico que não tem como, aí eles deixam aqui para jogar fora. No começo eu fabricava, fazia botina, mas hoje não tem como, é mais fácil comprar tudo fabricado. Então é melhor fazer consertos. E tudo que eu uso até hoje são as coisas que eu aprendi lá atrás, quando era moleque.

JC - Apesar de ter menos sapatarias atualmente, a sua está lotada de serviço.

Cirino - Eu precisava de um funcionário que soubesse trabalhar, mas não tem ninguém. Pessoal não se interessa mais em aprender a profissão. Por isso acho que daqui uns anos os mais velhos vão para outra vida (risos) e não vai ter mais sapateiros mesmo.

JC - E o senhor, mesmo com 73 anos, quando vai parar de trabalhar?

Cirino - Até quando Deus deixar. A aposentadoria do INSS é mixaria, então precisa trabalhar. E eu gosto, ficar em casa não dá. No começo da pandemia fiquei 20 dias em casa, não gostei.

JC - Quando não está trabalhando, como passa as horas?

Cirino - Gosto de futebol, vejo jogos na TV. Mas não só do meu time, acompanho partidas de outras equipes. Também vejo filmes, mas o que mais gosto mesmo é de futebol.

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