CRÔNICA

'Que é que eu sou, que é que eu sou? Sois rei, sois rei!'

Por Tito Damazo | 23/03/2024 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para a Folha da Região

A sociedade humana em sua organização coletiva em evolução sucessiva e constante, desde os primórdios, se fez tendo um ente como figura maior, posicionada de forma destacada e superior aos demais. Os mecanismos para que assim se tornassem foram (e são) desde os mais ilícitos, espúrios e baixos aos mais honestos e bem-intencionados.

A verdade é que sociedades o tiveram e o têm. Referidos e chamados generalizadamente de líderes, o que, na grande maioria, não procede, uma vez que traz confusão com chefe. Líder não se designa, não se nomeia, mas, ao contrário, suas ações, atitudes, procedimentos com que se definem a grandeza de suas habilidades e competências, naturalmente o destacam, levando o coletivo de que participa a aclamá-lo digno deste lugar.Chefia, feitas as raríssimas exceções, se impõe ou é imposta, resulta da força de poder. O chefe manda, decide. É temido, afeito ao despotismo, à demagogia e ao populismo. Líder coordena, dialoga, debate, conduz e se conduz com crítica e autocrítica.

Liderança é posto móvel, flexível, que se faz durante situações circunstanciadas, mediante as quais as destacadas habilidades e competências de determinado indivíduo daquele coletivo o definem como o elemento a conduzir e coordenar a ações e medidas necessárias.

De forma mais clara e compreensível, suponho que o sistema empresarial, desde o seu nascedouro,generalizadamente atua com os postos de chefia dos variados setores, desde o mais simples ao mais complexo, sendo impostos pelo proprietário ou sistema de propriedade. O poder de mando decide quem chefiará o quê.

Pode-se entender que, não muito diferente, assim acontece nos sistemas de governo e de estado dos países contemporâneos de hoje (e aconteceu nos reinados clássicos ontem). Ontem, os reis nos reinados por hereditariedade. E a lenda rezava que assim era por “vontade e terminação dos céus”. O rei, a rainha, o imperador, a imperatriz eram “assinalados pelos deuses” para dirigir os homens na terra. Nem se precisa recorrer a compêndios e compêndios de história da civilização para se saber como, verdadeiramente, essa farsa tramada e mantida pelo poder econômico e pela Igreja se realizava, para a perpetuação daquele “status quo”. Grandes obras literárias universais se escreveram de modo a deixar transparecer esse mecanismo. Basta ler as de Shakespeare, notoriamente as tragédias.  

A modernidade restabeleceu a república como forma de governos, os quais, no entanto, também convivem com monarquias constitucionais (parlamentaristas) em cujos “reinos” o rei ou a rainha têm a função de chefe de Estado, pois que o governo é mantido pelo parlamento e dirigido por um primeiro-ministro. Tanto num quanto noutro caso, funcionam como sistema de governo, democracia ou ditadura (militar ou civil).  Quanto a isso, cabe ainda considerar que, na verdade, muito frequente e constantemente estas formas de governo se têm feito de nomeada, pura fachada, sob a pasteurização político-ideológica tão escusa conquanto vil – “repúblicas monárquicas”, “presidentes imperadores”.

O fato é que a titulação rei, rainha, príncipe, princesa se incutiu na formação cultural dos povos como sinônimo de grandeza, de superioridade como valor da mais alta qualidade. Seu uso e emprego nesse sentido se mantêm tão consensual que é aplicado de maneira automatizada, indiscutível e inquestionável, e aceito, e ostentado com galhardia e orgulho. Mesmo que a história, as artes – senão a literatura, o teatro, menos populares (por razões que não cabem aqui discutir) – como o cinema, o “streaming”(refiro-me, no caso, a filmes e séries), normalmente entremostrando qual era o, quase absoluto, padrão de procedimento destes governantes. “Deus salve o rei”, eis a insígnia composta pelos poderes-mor a ser incutida como as superioridades intangíveis e reverenciadas.

Vimos, então, por considerá-los grandezas superiores, assim nomeando-os. Por isso, o rei do futebol, o rei do gado, o rei da voz, o rei do rock, o rei do baião, o rei dos animais, o rei dos reis; a rainha do rádio, a rainha do basquete, o príncipe dos poetas etc. etc.

Uma das críticas mais acerbas quanto a esse vezo, conquanto se dilua muito, pois que se faz pelo humor, é um excelente quadro de “Viva o Gordo”, em que figuram o rei e sua corte, emparelhado com ele, um cardeal. O rei é um incompetente absoluto, determinando tudo o que lhe sopra no ouvido sua eminência, não sem antes recriminá-lo por querer se meter em suas decisões. Depois, os conduz a aclamá-lo. Emite a pergunta-ordem: “Que é que eu sou, que é que eu sou? ” E a corte em uníssono: “Sois rei, sois rei”.


Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poetamembro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras).

 

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