Durante o meu luto pela morte da Helena, me cobraram um texto sobre literatura. Não se trata de nenhum sadismo. A entrega estava programada há muito, eu fui postergando, até que o ditado ensinado por minha mãe aos brados realizou-se em sua plenitude, numa situação extenuada. Deixei para depois, a morte me deu a lição em forma de raio.
Lembrei-me de que a morte é um tema recorrente na literatura, poderia fazer um requentado sobre a peçonhenta. Elaborar um texto morno. Não ia brindar meus leitores com um texto sem sabor, não existe mornidão diante de tema tão intrigante.
Aquelas minhas visitas à UTI, na Unimed, acompanhada de filhos, parentes e amigos já virava rotina. Helena ruminava palavras, resmungava frases presa àquele leito.
Pensei nos enfermeiros e médicos que têm como local de trabalho aquele chão de hospital. Devolver a vida é muito bom, mas morrer também é necessário. Morrer seria tratado por aqueles profissionais como assunto corriqueiro, já não emocionava. Todos os dias morria um, a morte não foi dominada, era apenas um animal de estimação naquele recinto.
Mas naquela manhã de quarta-feira (20/09/2023), Helena estava estática no leito. O médico chegou, com toda a precaução para dizer a pai e filho que a Helena dormia profundamente. Nenhum dos dois, homens da ciência e de Deus, se escandalizaram. Aceitaram a sentença com resignação. Juntar documentos para registrar o óbito, funerária, cemitério. Família cumpriu a tarefa.
Durante o velório, com corpo de Helena no caixão, bem simples, convidados prestavam solidariedade. Todos cabisbaixos pensavam na morte da Helena, mas a preocupação era a própria finitude. Aquela sala de velório era um recorte de nossa impotência diante da morte. As coroas de flores com fitas inscritas registravam a participação social da falecida. No futuro, todos nós também estaríamos dormindo profundamente, como versejou Manuel Bandeira.
Havia muitos escritores presentes, certamente, cada um juntava ideias para seus textos, nem todos foram costurados, pois após o enterro, a vida era mais impositiva.
Após os olhares de despedida à Helena sepultada, alguém me chamou a atenção porque digitava no celular. "Até nesta hora não larga o celular!"
Expliquei em voz alta que estava pagando os pedreiros que recompuseram o túmulo. Tudo era muito sublime, mas alguém precisa pagar a conta. As despesas com o sepultamento também cabem no texto.
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras
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Comentários
2 Comentários
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Maria de Lourdes Lopes e Castro 24/09/2023\"Dormindo profundamente\" gostei muito dessa crônica. Realista e repleta de sentimentos. -
Fernando Pessoa (jaime scatena) 24/09/2023Sobre a passagem do tempo, disse Fernando pessoa: Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. A realidade não precisa de mim.Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.Se soubesse que amanhã morria E a primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo.Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é.