ARTIGO

Como regular o “shitstorm”?


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Este longevo escrevinhador já pode testemunhar: com o tempo, tudo se ajeita. É tal e qual sempre disse o povo: “não há mal que sempre perdure, nem bem que nunca acabe.” Falava-se até mesmo “em mal de sete dias”, os míticos e exóticos sete dias. Isso servia também para os escândalos, por maiores fossem. Aconteciam, surpreendiam nos dois primeiros dias, comentava-se em outros dois, arrefeciam no quinto dia e acabava no sétimo.

Atualmente, nem escândalo tem tempo. Quase mais nada surpreende. E, se surpresa houver, rapidamente é esquecida. Vivemos uma época em que não se tem mais olhos para olhar e ver os outros. Olhos veem apenas a si mesmos. Ocorreu o desaparecimento do outro. Ele não existe ou, se e quando percebido, é nivelado a todos os demais. Um simples objeto de consumo e de produção. As raras exceções, quando acontecem, revivem a história do sapo que virou príncipe.

Lembro-me – e chego a sentir a emoção do espanto – quando vi, pela primeira vez, cenas num televisor. No início dos 1950. Foi na Mercantil Piracicaba, na rua Governador, de propriedade do empresário Eduardo Fernandes Filho. Aquelas personagens pareciam vivas como se elas próprias tivessem invadido as telinhas. Era um milagre da ciência e da tecnologia, realização do inimaginável. E, bons anos depois, vimos o primeiro homem descer na Lua e acabar com a nossa fantasia: não havia, nela, nem São Jorge, nem o dragão. E os poetas sentiram a alma sangrar.

Ah! a Lua. Tantos mistérios, inspirações, segredos, deuses e deusas desde os primórdios da humanidade! E, agora, quase banalizada, já invadida por humanos e suas criações técnico-científicas... Se conseguimos bagunçar o mundo, o que não faremos por lá? Seremos, ainda outra vez, exploradores, individualistas. No entanto, uma simples viagem aos espaços, quanto não atenderia, com pão e leite, os famintos? E investimentos em guerras, apenas para matar?

A conturbação mais perigosa, todavia, é-nos, paradoxalmente, trazida pela maravilha da Internet. Conseguimos transformar sonhos em pesadelos. O nome da explosão de mentiras e engodos já foi dado: “shitstorm”, tempestade de cocô. As principais nações já estudam como regulá-la, apesar de hipócritas confundirem regulação com censura. Ora, a civilização surgiu desde quando se criaram normas de convivência, formas de coexistir. A única plena liberdade possível é apenas de pensamento. Tudo o demais esbarra diante do outro. Apenas isso.

Mudanças causam tensões. Como poderiam, os mais jovens, imaginar um mundo sem Internet? Pois, existiu. E a vida desenvolvia-se com o que aparentava ser a normalidade. No entanto, o instinto de criação humano é infatigável. A filosofia pensa, a ciência e a tecnologia realizam. E eis o foco da tensão: para onde, ao lado do bem e do bom, desenvolve-se o mal e o mau?

O universo digital abriu espaço também para o “shitstorm” que viola direitos fundamentais, caudal de irresponsabilidades. Como conter tempestades morais, um sistema de informação universalizado? Dado seu poderio, como regular o incontrolável? A questão há de ser considerada também em sua dimensão moral e civilizatória. Pois, na globalização acelerada, vai-se perdendo o ideal de “nações unidas”. O próprio significado de democracia começa a ser questionado. E ameaçado. O caos do que, agora, se entende como “informação” trouxe a dúvida, a desconfiança. À tal desordem, já se deu o nome de “infodemia“. 
 Como, pois, regular a pandemia de “shitstorm” se nossos informantes são robôs já programados para isso? Ainda não há respostas.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor

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