Férias de julho

Por Marisa Bueloni | 13/08/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Uma das minhas mais belas recordações é a figura da minha madrinha, tia Anita, uma fada risonha, um anjo que Deus designou para soprar sobre minhas inevitáveis feridas. O seu abraço tinha um gosto de bolacha recheada e o aroma de suas roupas era o único que nunca me deu dor de cabeça.

Foi nas férias de julho, em São Paulo, que o mundo se desenhou mais belo para mim. Ir de trem para a capital, junto com Neusa, minha melhor amiga de infância, era um sonho – igualzinho aos dos livros que devorávamos naquele tempo memorável. A viagem era uma aventura sem palavras. Pois íamos ambas ao encontro da felicidade.

O sobrado da tia Anita. O almoço maravilhoso que brotava de suas mãos, o seu riso aberto, a sua alegria, as piadas e brincadeiras, as histórias que faziam nos reunir em roda à sua volta, todos prontos para o impagável desfecho. As gargalhadas estrepitosas, gente tossindo e se engasgando de tanto rir, os comentários de quem queria atestar a veracidade de tudo o que ela havia contado, sem conseguir terminar a frase, por falta de fôlego. Tia Anita fez meu coração pequenino conhecer este mel adorado e sou grata pela lembrança daqueles risos que ainda posso ouvir.

Ah, o abraço da minha madrinha, o sobrado no bairro da Mooca, as luzes que se viam do terraço no andar de cima. A cidade luzindo ao longe, dizendo para mim: esta cidade é sua. São Paulo era só minha durante as férias de julho. Eu amava o cheiro que havia no ar, o casario, os postes característicos do centro, a Praça da Sé, as escadas rolantes, as lanchonetes onde tia Anita nos levava para tomar sorvete. Eu amava cada quarteirão da cidade, os arranha-céus que me faziam ficar com dor no pescoço de tanto olhar para o alto.

Sem saber, minha madrinha fez sarar muitas das minhas dores. As do corpo e as da alma. Uma vez, em casa de um tio, longe da Mooca, sofri uma queda e bati a nuca na quina de um degrau. Tia Anita tomou um táxi e foi me buscar. O seu amor não me deixou ficar doente. Fora uma pancada e tanto na nuca, uma dor da qual nunca me esqueci.

As doçuras da vida também acabam. As férias, um dia, terminam. O apito do trem na Estação da Luz era o som da partida, fazendo meu peito explodir de dor, numa agonia insuportável. Evitava olhar para a janela e ver tia Anita acenando o adeus mais sofrido do mundo. Ela abria os braços, ria, acenava, enxugava o canto dos olhos, jogava beijos. E a volta para casa era uma viagem muda e sem paisagem, cheia de sombras e saudades.

No trem, o banco duro de madeira era a certeza de que as férias haviam acabado e que o sonho ficara para trás. Adeus terraço do sobrado, livros, brincadeiras, a comida incrível de tia Anita, a sua bondade, seu riso escancarado, um coração que se derramava para todos, os braços sempre abertos, a voz amorosa, os olhos faiscando uma luz que só eu captava. Nas férias de julho, ela era só minha.

Tia Anita foi o fato mais belo da minha infância, da minha juventude, da minha vida adulta, da minha existência, até o momento em que partiu, brandindo no ar o seu riso maravilhoso, a sua face corada, o seu abraço eterno.

Férias de julho, um anjo a nossa espera. O coração arrebatado de amor. A gente era feliz e não sabia.

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