Memória. 80 anos de Clarice Herzog

Por David Chagas | 11/07/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Deixei minha cidade em 1975 para estar em São Paulo, prosseguir estudos e ensinar. Escola privada, de enorme prestígio à época, cujo objetivo era preparar alunos para a universidade em tempos de seleção feita por múltipla escolha, sem quaisquer outros critérios que pudessem revelar aptidão e competência, incluiu-me entre seus mestres. Aglomerados em anfiteatros, os alunos recebiam carga de informação de professores esquecidos da sua juventude e da sua condição humana.Passados meses, os pais deliravam ao saber seus rebentos ingressando nas melhores faculdades do país, sem se dar conta do erro cometido na sua formação. Esta ação pedagógica não respondia aos ideais que me chamaram a ser professor, mas obriguei-me a ela, abdicando de grande parte do sonho.
A década de 70 ia pela metade quando me encontrei frente a frente com a cidade de São Paulo. Repito Caetano na canção: Difícil começo! Vinha, como ele, de um sonho feliz de cidade para realidade a ser descoberta e sentida. Naqueles dias havia seguidas manifestações de protesto protagonizadas por estudantes e pela classe operária, tentando resistir às imposições ditadas pelo Ato Institucional número 5,que interferia, de forma drástica, na relação Estado-Vida cultural.
Chegando a São Paulo, passei a revirar o avesso do avesso do avesso do avesso, para entender a origem de tanta miséria e dano e fazer da capital, espaço para aprender e evitar erros. Percorrer seus quatro cantos em busca da oportunidade, do entendimento, de sentir o que, realmente acontece no cruzamento da Ipiranga com a São João a ponto de entorpecer transeuntes.
Estava, como tanto, em busca de filmes, teatros, espetáculos musicais, dança, concertos para, então, acercar-me mais e mais das icônicas avenidas paulistanas e ler, reler, ouvir e entender seus “poetas de cantos e espaços/ suas oficinas de florestas/ seus deuses da chuva”. E romper horizontes por rios e matas observando o Monumento às Bandeiras de Brecheret. Misturar-me a velhos e novos baianos, perder-me nos espaços da cidade, ler e reler Mário e Oswald de Andrade, aproximar-me de Rita Lee e Arnaldo Antunes, dos poetas do concretismo, de jornalistas notáveis e de outros tantos e tantos outros que sabiam passear pela “garoa de meu São Paulo, timbre triste de martírios”.
São Paulo, naqueles anos difíceis, guardava muito da última experiência democrática vivida pelo Brasil e tinha nos “campi” universitários, a possibilidade de encontrar caminhos para recuperar a liberdade perdida. O Estado intervia, mas uma ou outra manifestação sempre vingava e, correndo riscos, o jovem interiorano descobria novos sentidos para a vida, conhecendo pessoas antes sabidas em artigos de jornal ou em livros publicados. Sentar-me numa cadeira da Universidade de São Paulo e assistir a aulas do professor Antônio Cândido, por exemplo. Conversar com o professor, aprender com ele. Naquela sala, outros tantos alunos como eu, todos com iguais sentimentos: “Mestre, coração de meu corpo intelectual e inteiro”.
Assim, como no poema de Mário, ia limpando meus olhos desejosos de conquistas e liberdades da garoa que os embaçava entorpecendo os sentidos. Avançar, sentia avançar, alimentando meu espírito do que a cidade me oferecia.Descobrir a urgência de mudança, a descoberta do mundo, experiências necessárias para tornar a vida um instrumento de luta, em favor, sobretudo da justiça, com liberdade de pensamento, de consciência, de opinião, de ideias. Aprender com isso. Ensinar isso. E ver em Clarice Herzog, modelo de resiliência, resistência e respeito.
A tarde, em meio a manifestações, “caía feito um viaduto” suscitando consciência do perigo. A presença de policiais enfileirados, alguns, com expressão solidária, meio que entendendo o desejo jovem de liberdade. A maioria deles, estimulados pelo crédito que lhes davam, demonstravam fazer da força, poder, amedrontando, quando uma voz ouvida longe determinava. Agigantavam-se. Cacetetes em punho sobre a massa juvenil macetavam seus sonhos, dilaceravam sua alma e os maltratavam sem reconhecer que os jovens, os operários os tinham incluídos naqueles desejos de vida livre, com justiça social e direitos preservados.
“Tu sabes,/ conheces melhor do que eu/ a velha história./ Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flordo nosso jardim./ E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/e não dizemos nada./ Até que um dia,/ o mais frágil deles/ entra sozinho em nossa casa,/ rouba-nos a luz, e,/ conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Afirmam ser este poema de um poeta marginal de São Paulo, da minha geração, que viveu intensamente aqueles anos difíceis. Estes versos nos davam voz, quando, em uníssono, formava-se um jogral com sem número de participantes. Em cada passo nosso, esperança e resiliência – que sufoco! – naquela interminável noite no Brasil.

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