No trem da vida

Por Marisa Bueloni | 03/06/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Vejo, encantada, que algumas lembranças também se recuperam. Onde andam os sonhos de antigamente? Guardados na gaveta da memória, intocados, como um cristal, o qual apenas se admira e se contempla. Em nossa saudade, as coisas se mantêm puras e inalteradas, como a casa da nossa infância, o primeiro dia de aula no grupo escolar, a primeira professora, o gosto do lanche na hora do recreio e todos os medos do mundo.

Havia as histórias de fadas, a luta do bem contra o mal, onde o bem sempre vencia. Havia prêmios e castigos, de acordo com o embate entre anjos e demônios. Estas histórias povoaram minhas noites assombradas pelo vento e pelo apito do trem noturno. Impossível dormir, havia uma imensa locomotiva na minha alma, uivando pela noite de todos os sonhos.

Sim, o bem sempre vencia e a moral da história ganhava o reforço da nossa adesão. Afinal, nós também queríamos fazer justiça, ainda que tardia. Queremos crer, de todo o coração, que também hoje o “politicamente correto” esteja relacionado com a vitória do bem.

É bom ensinar a gentileza às crianças, para que cresçam sensíveis e gentis. Que elas tenham uma convivência pacífica e harmônica com animais e plantas, e compreendam que o planeta todo merece amor e respeito. Talvez funcione toda boa iniciativa de dar-lhes o conceito da doçura, das atitudes corretas, mudando a letra de uma velha cantiga. Se antes se dizia: “atirei o pau no gato”, agora se canta “não atire o pau no gato”. Alguém pode ser contra a mudança na letra?

O mundo de hoje ainda guarda as histórias de antigamente, muitas delas atrevidamente revisitadas, porque alguns autores gostam de coloridos novos em enredos velhos. Mas a essência de cada história permanece, marcada naquela cicatriz indelével, no caráter que se formou em cada um de nós um dia.

Os sonhos de antigamente estão guardados numa caixinha de música, num porta-joias gracioso, de pouco uso e muito zelo. Se usar muito, a bailarina pode parar com aqueles rodopios delicados. Quero da vida a sua delicadeza. Se há lembranças menos doces, empurramo-las para debaixo de um tapete invisível e as esquecemos ali. Ou lidamos diretamente com elas, com suas implicações, sem medo, para a nossa saúde mental e física, na consequente atitude de “pessoa bem resolvida”.

Os “bem resolvidos” também fraquejam, às vezes. Porque são tão humanos quanto os “mal resolvidos” e carregam nos ombros um peso maior: o de parecer sempre bem, com a intrepidez saindo pelos poros. Mas chega um hora em que tudo desaba e até a mais valente das criaturas necessita de ajuda, apoio, amparo. Nem por isso deixa de ser admirada como aquela fortaleza que sempre foi.

Quero guardar a delicadeza da vida, o rumor das lembranças, as tardes no sítio e os banhos de cachoeira, os pés de manga, o relvado, as goiabeiras em flor, as noites estreladas no terreiro, o milho verde na brasa e o carinho dos meus tios. A voz de dona Júlia, minha primeira professora, seu anel e seu lápis vermelho, as férias de julho na casa da madrinha em São Paulo. Deixar descansar um pouco aquele trem noturno, carregado de recordações, que faz manobras intermináveis na minha alma.

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