Antenas da raça

Por Marisa Bueloni | 17/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Muita gente torce o nariz para a poesia. Claro, não se pode impor um verso, sob pena de ser expulso do ambiente. Poeta? Já ouvi: vade retro! E respondi: a que metro?

Eis que poetas são “antenas da raça”, como bem definiu o autor Ezra Pound. Eis que poetas constituem uma espécie em extinção e o pouco que resta deles não causa boa impressão. Mas até Freud disse: “Aonde quer que eu vá, eu descubro sempre que um poeta esteve lá antes de mim”.

Antigamente, poetas morriam moços, de tuberculose, num fenecer romântico e idílico. Hoje, de que morrem os poetas? Talvez de balas perdidas, dos alimentos altamente cancerígenos, das investidas de loucos ao volante, de velhice ou do próprio cansaço de viver. E de Covid-19 também. A dualidade da vida e da morte, presente nos versos dos poetas, remete-nos a este cotidiano violento e sem poesia.

A vida se tornou tão perigosa, senhores, que estar vivo é um milagre, uma dádiva absoluta. No Facebook e demais mídias, a maioria saúda um novo dia que começa, pede graças, espalha bênçãos, celebra a vida e depois agradece de novo quando o sol se põe. E então, todos se dão boa noite, e se desejam um bom descanso. O universo se recolhe e vai descansar.

Se a poesia é necessária, um dia saberemos. Ainda é muito cedo para se tirar conclusões. A Terra nem é tão velha assim e a humanidade caminha do jeito que todos estamos vendo. Segundo Chardin, a Criação ainda não terminou. Está em construção. Como todos nós. Todos sendo construídos, dia a dia. Por isso, pedimos calma e paciência. Quando ficaremos prontos?

Anulem a poesia de um gato na janela, de um passarinho bebericando água na pocinha da calçada, de um céu estrelado, de uma foto antiga, e nada sobrará. Tirem da noite a poesia do silêncio e da quietude e um rumor vazio será ouvido sem emoção. Tirem da tarde o seu cair sereno e estaremos perdidos. Sentimos medo que nos seja roubada toda a poesia do mundo, as rosas e os sonhos.

Vejo a salvação por perto, enquanto um poeta exprime a inspiração de sua esperança. Não proponho tese alguma. Apenas vejo que os poetas existem e suas almas palpitam. Deixam impregnados os livros, as mentes, os corações, as telas de alguns aparelhos luminosos, diante dos quais nem é preciso pensar.

Poetas se imolam para que outros leiam sua dor, sua luta, suas inquietações e sua insônia. Para que penetrem no que corre em suas veias, enquanto há vida por trás de uma janela íntima, interior e particular. Vejo, com apreço, que estas criaturas subsistem, sobrevivem, não obstante a artilharia pesada da aspereza que os cerca.

Poetas existem para isso: para polir um pouco a superfície de todas as coisas. Para lustrar com a força da palavra um tempo que perdeu sua fé. Não para que o mundo brilhe por inteiro, porque isso não é tarefa de poetas, mas para que se manifeste um chão bonito e habitável, digno de ser cultivado, e que se conheça um pouco da beleza.

Estes seres de outra galáxia julgam que ainda existem olhos e ouvidos interessados nisso. No derradeiro fonema, apocalíptico e fatal. Céus que se enrolam como pergaminhos. Ou pétalas de rosas jogadas ao ar. Ou nuvens com formato de coisas.

Poetas! Quanto vos amo!

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