Algo a dizer

Por Marisa Bueloni | 05/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Quero ter algo precioso a dizer. Algo sublime, que traga alívio a estes dias de luto e de dor. Uma palavra com o bálsamo poderoso da cura, a bênção das alegrias e da descoberta do amor. Quem descobre o amor, descobre o mundo e torna-se dono dele. Possui a terra, a herança dos pacíficos e dos mansos. Cultivarão vinhas e beberão vinhos, construirão casas e morarão nelas.

Algo a dizer. Quem tem algo a dizer que o diga. Que o faça agora ou cale-se para sempre. Mas não deixe passar a oportunidade de ouro. Diga. Pronuncie-se. Dê o seu testemunho de fé, registre em cartório, com firma reconhecida, pois o pressuposto é que o dito seja precioso demais.

A palavra possui uma força extraordinária. Palavras penetram mansamente no reino dos fonemas e os praticam à exaustão. Um amigo escritor, já falecido, dizia que “escrever é juntar palavras”. E as venho juntando, ao longo da vida. Mas há que escolhê-las, selecioná-las, como se apalpam as frutas nas bancas, para conferir sua firmeza, se estão boas e próprias para o consumo.

Palavras possuem o sabor exótico de certos sabores. Exprimem com absoluta clareza o que quer que seja. Um poema, uma sentença judicial complicada, um termo de compromisso, declarações, textos técnicos, quase sempre frios e específicos. Mas todas elas transmitem o pensamento, a ação, a faculdade de conclusão, de fechamento de um assunto.

Mas ainda estou longe do exercício a que me propus: dizer algo sublime. Talvez um verso que antecipe o prenúncio da aurora, a tábua de salvação, a última esperança, a que não morre jamais. Quem sabe, duas frases simples, lapidares, de efeito retumbante. Como a do retrato de Itabira na parede. Mas como dói.

Dói tudo. Dói a dor de saber das pessoas queridas, internadas com a Covid. Recebo tantos pedidos de oração e rezo por todos. Vou desfiando meu terço, meditando conta por conta, enquanto tomo sol no quintal. Ah, que momento abençoado! Não troco por nada neste mundo meu momento diário de prece.

Sob o sol deste verão, interpreto a sinfonia das palavras não ditas. Aquelas que se encerram no mais fundo da nossa alma e desejamos que lá permaneçam em segredo. Há muito mais verbos implícitos no silêncio. Fatal é a tentativa de alcançar o estado sublime das coisas. É como escalar o Everest, assim, só de ouvir falar. Os alpinistas conhecem a beleza. No topo das alturas, ficam sem palavras.

Fico sem palavras toda vez que me assalta a necessidade de buscar a beleza escondida em toda parte. Quero conhecer a profundidade de um verso simples, primitivo e pequenino. Não precisa ser nada muito erudito. Algo como uma figura de linguagem que represente a metáfora da vida. E que a vida, sim, seja a lei de todos nós.

Estamos presos em nossas casas e o sublime foge de nós, pois estamos cansados. Não basta abrir portas e janelas, tudo está lá fora, mas devemos nos resguardar. A ordem é ficar em casa, isolados, tendo contato com pouquíssimas pessoas, saindo somente para o necessário. Cumpro com fervor esta regra. Aliás, ninguém cumpre tão bem uma ordem quanto eu.

Cumpridora deste caos surrealista, sigo em frente. E se o texto mal esbarrou em alguma coisa notável e bela, consolo-me. Mais um motivo para tentar de novo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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