Lembranças em tempos de pandemia

Por David Chagas | 18/01/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Os que são meus leitores ou foram meus alunos sabem. Ao longo de trinta anos estive próximo do poeta Carlos Drummond, apreço de que me orgulho muito. Dele ouvi sobre sua produção literária, seus amigos do Sabadoyle, um dos últimos salões literários em casa do bibliófilo Plínio Doyle, de que participavam escritores; seu trabalho no Ministério, com Gustavo Capanema, sua visão crítica do governo Vargas, embora o servisse no MEC; sua estreita troca de correspondências com Mário de Andrade, sua belíssima relação de amizade com Maria Julieta, sua única filha, também ela minha especial amiga.

À época, jovem adolescente, sentia-me privilegiadíssimo em visitar o poeta na Conselheiro Lafaiete, no Rio, quando, estando lá, passava com ele algumas horas em que aprendia muito, ouvia histórias, contadas com precisão de linguagem e muito humor e me encantava observando quadros nas paredes da sala de estar e de jantar, assinados por grandes nomes da arte brasileira.

Tudo naquele apartamento era especial. Dona Dolores, cabisbaixa, calada, passava pela sala, com aceno e olhar. Nenhuma palavra. Demorei a entender a razão de tanto silêncio e só pude saber melhor depois da morte do poeta quando veio à luz uma de suas obras póstumas.

Ao final da visita, Drummond quase sempre me reservava surpresa agradável. A melhor delas, sem dúvida, estar com Pedro Nava, na Glória. Ao telefone, perguntou ao memorialista se poderia receber amigo seu, sem me perguntar se tinha ou não interesse nisso. Nesta ocasião, me acompanhavam dois alunos, devotados que eram à Literatura. Fomos todos três em visita ao escritor e médico, poeta, pianista e pintor.

Horas com Nava valeram uma vida. Anos mais tarde, pude sentir intensamente o privilégio deste encontro, momento único de que guardo comentários precisos a respeito de suas obras e a repercussão delas entre personagens citados por ele. Poucos certamente conhecem o que nos foi dado saber. Faço disso, agora, lembrança das que me alimentam a velhice com nobreza e orgulho.

Voltei a falar com o escritor em outras oportunidades. Numa delas, em torno de Clarice Lispector, notável escritora, interlocutora com quem pude, algumas vezes, trocar conversas. Eu sempre a chamei dona Clarice, por mais que insistisse ser tratada Clarice, apenas. Ao ensinar sobre sua obra, me referia a ela e à Cecília Meireles com o respeitoso tratamento. Hoje sei que não se deve à minha idade nem ao tempo em que vivi, mas da honra que sentia ao poder, jovem ainda, contar com sua amizade.

Quantos terão podido estar com gente desta grandeza cultural e humana? Não fosse o estímulo de professor que tive no curso colegial, poeta extraordinário, senhor da palavra, do ritmo e do verso, sábio, humano, justo.

Luiz Martins Rodrigues Filho, meu velho e querido professor. Suor do Tempo, um de seus livros. Honra-me ter sentado à sala em que dividia conosco, jovens adolescentes, cultura e saber. Se Cida Bilac, outra notável professora, me apresentou Guimarães Rosa e percorreu comigo as veredas traçadas em seus livros, Luiz Martins me colocou em mãos a obra de dona Clarice, ajudando-me a reconhecer a genialidade dela.

Quanto me lembro dele! Drummond afirmava ser excelente poeta! Encontro em seus versos muito da forma como o via: “quieto, encolhido no seu silêncio de caramujo, sem estardalhaço, como estrela que finge não brilhar”. Como brilhava! Estrela de primeiríssima grandeza.

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