“Seu” Pitico

Por David Chagas | 15/09/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Menino, vez e outra, pela tarde, saíamos em busca de um casario distante. Toda vez, minha mãe, na sua forma recatada de ser, insistia em dizer que estávamos à procura das botas de Judas. Não entendia bem o porquê disso. Anos depois, pude saber que Judas se enforcara, com pés descalços, por conta da traição cometida contra Jesus, sem que jamais se descobrisse onde estariam as botas com as trinta moedas escondidas.

Na caminhada inicial, nunca nos queixávamos da distância. Tudo era festa, conversaria, alegria de gritos. Difícil, voltar, corpo já cansado, um pai e uma mãe, apenas, para um punhado de filhos. Só mais crescidos entendemos que visitar “Seu” Pitico não era passeio. Era compromisso de amizade, este sentimento que persiste no coração de pessoas que se obrigam a estar juntas, abraçar, trocar conversa, sempre e quando, antes da pandemia, eram gestos possíveis.

O leitor, por certo, não deseja saber nomes de quem não conhece. Andejo pelo esquecimento. Triste é não esquecer do que desejava. Crueldade do tempo! Por sorte, memória para o rosto iluminado e branco, pele carcomida pelo sol a nos receber agradecidos perguntando o que via a criançada em dois velhos carcamanos. O sorriso breve, natural, espontâneo se abria ainda mais à nossa chegada. Viviam ali, os dois, escondidos de tudo, ajeitando, na simplicidade, a vida carregada de ternura.

Levávamos agrados. Destes, da cidade. As dádivas enchiam de luz o olhar dos dois velhinhos, não tanto pelo que eram, mas pela presença que lhes faziam saber serem lembrados. Lembro-me bem que a alegria mansa, o jeito humilde, o olhar brilhante dos dois deixavam meus pais igualmente felizes.

Faço registro do terreiro grande, a perder de vista, da casa, solitária, distante das demais, e da forma como se apresentava. O piso – e era piso aquilo? – chão batido. Nele, não se via sequer uma pedrinha que destoasse no alisado da terra. Quanto corríamos no terreiro que se alargava aos nossos olhos, tão vasto e limpinho, jogando para longe o verdor das árvores que o circundavam.

Terra de serventia, ajeitando nos cantos do quadrilátero desenhado pelo terreiro, horta viçosa, extenso aglomerado de milheiro, despontando espigas e fazendo pensar bandeiras ao mirar suas folhas lanceoladas tremulando ao vento. Mais adiante, frutuoso, guardava raízes de carambola, de caqui, fruta do conde, jabuticaba e deixando arrastar-se pelo chão o caule rasteiro da melancia. Ao redor, ciranda de eucaliptos.

Muitos anos passados ao sair pelo mundo, só pude mesmo encontrar alma semelhante àquelas em terras africanas. Bom estar entre gente que atrai inocência, simplicidade, sinceridade, candura. Neste tempo frequentava palácios, residências oficiais de embaixadas, casas requintadas de ilustres anfitriões, obrigando-me a revelar o berço bem-posto em que fui acolhido. Tinha, no entanto, intimamente, o desejo de andar pela casa de “seu” Pitico, passear pelo morro de Graúna, ir à Escola Rural de Batovi, comer pamonha em festas de Tanquinho e assentar posto em Saltinho, junto aos alunos do curso noturno, na primeira escola em que me efetivei.

Quando entendi, nas muitas conversas com Drummond, que escrever atenua problemas internos a que nenhum psicanalista pode alcançar, alivia a alma, além de propiciar contato com o outro e estabelecer fronteira entre o real e o ficcional, encontrando, no primeiro, motivo para uma visão criadora do segundo, pude, com isso, dizer a respeito do que é, como se brincasse, na expectativa de que o leitor, por si, entrasse na história e vivenciasse o encantamento de que se reveste o texto, a ponto de revelar, o mais íntimo de nossa própria espécie.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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