Noturno

Por Marisa Bueloni | 08/09/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Então, acordei às 4h30 da manhã. Perdi o sono, como se diz. E pensei em escrever. Havia um silêncio maravilhoso e percebi que estava com os plugs de ouvido. Acabei me acostumando com eles, por causa de uma situação particular. Há anos venho usando.

Não os tirei. Achei boa aquela paz exterior. Nenhum ruído, nenhum fragor de astros caindo lá fora. Eu estava segura no meu quarto, minha cama era o meu refúgio amado e aquele momento me pareceu único. Será a vida um mero ramerrão, repetitivo e insosso, insípida rotina de um dia quase igual ao outro? Não pode ser.

Como quebrar, na vasta madrugada, essa muralha de pedra que às vezes nos sufoca? Como sair de dentro desta casca ancestral, voar, voar, subir, subir? Como apanhar aquela flor exótica no abismo do penhasco? Como zelar por este cristal intocado que nos move a cada segundo?

Então, eu me repito e não percebo. Dirijo sempre pelas mesmas ruas e meu gestual é limitado. Seria bom renovar a ansiedade saudável. E, de repente, saber que, além do céu mais azul, alguém está lá, sofrendo as mesmas dores de parto desta metamorfose sem fim.

Haverá palavras para esta grandiosidade? Como definir o êxtase da iluminação? Não basta escrever, não basta. Além do mais, nenhuma palavra, nenhum vocábulo do idioma amado exprime a beleza absoluta. Sim, é monumental o que se passa. A alma nos acompanha até a cozinha, porque precisamos de um copo d´água. O coração está aos pulos. O que está acontecendo? “É a Vossa face que eu busco, Senhor!”.

Volto para o quarto, na certeza de que haverá o anúncio de uma revelação. E ela chega. O momento é propício. Devo guardá-la comigo e se o Anjo me confiou, não conto. Todos nós temos um segredo conosco. Só nosso. Partilhá-lo seria quebrar a ordem do Universo, alterar a órbita dos planetas, interferir no nascedouro das estrelas órfãs. Nem sei se elas existem. Supernovas. Buraco negro. Infinito.

Também somos infinitos enquanto duramos. Nossa memória ficará no retrato da parede. Alguém se lembrará de nós, um dia, apesar da poeira do tempo e do esquecimento. Minha mãe dizia que é preciso lembrar os mortos e rezar por eles. Há almas esquecidas, que não têm quem reze por elas. Rezo pelas almas dos suicidas, que alcancem a misericórdia de Deus.

A noite segue, o relógio no criado-mudo avança seus ponteiros e um clarão começa a surgir na janela do quarto. Se eu dormir de novo, irei sonhar? Como é bom conciliar o sono, depois que a inspiração fez seu trabalho. Parei de lutar com o travesseiro e o aceito como ele é. Assim como se faz com as pessoas, aceitando-as como elas são. Até a página doze, se bem me entendem. Sim, existem os perversos e arrogantes. Que o Senhor os corrija.

Ninguém insista com nada. Nem contra, nem a favor. Que tudo flua como um rio em nossa vida pequenina, diante do infinito eterno. Ele não muda nunca. O infinito está lá, galáxia após galáxia, milhares de sóis e de luzes. Sistemas solares desconhecidos. Luas que jamais sondaremos. Luares que jamais veremos.

Sob o céu que nos protege, fecho esta crônica. E se o amor estiver no pote de ouro, no fim do arco-íris, lá estarei para celebrar a festa da vida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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