O poeta. A palavra. A vida

Por David Chagas | 08/09/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Certa feita, numa aula de língua portuguesa do período noturno, a professora, braços abertos contra o quadro, voltada para seus alunos, ensinava difíceis lições de gramática. Havia, no entanto, um encantamento tal que os quarenta jovens entravam para dentro dela sugando-lhe alma a energia.

Esta lembrança vive em mim de forma tão aguda que não se perde na distância do tempo. Há uma mistura de sentimentos tais porque, daquele seu modo extraordinário de ensinar, nasceu em mim a certeza de que seria, com todas as dificuldades que a carreira impõe, professor. Ao escrever sobre isso, sinto quanto me falta a professora com seus ensinamentos, sua forma de transformar vidas, fazendo da escola, Escola, real, verdadeira.

Naquela noite – se bem me lembro, um suspiro, mais que um verso de Bandeira, revelou meu entusiasmo. A professora, de imediato, olhou-me fixamente demonstrando entender meu encantamento. Sem vergonha alguma, disse-lhe da admiração em entender, graças a seus ensinamentos, a língua portuguesa a serviço do texto, ampliando a magia da palavra, sem destruir-lhe a senha, aparentemente escondida.

Perguntou-me, então, se conhecia o texto usado como referência. Diante da negativa, situou o poema e o autor. Assim, conheci um poeta a mais de cidade que traz na sua história, excelentes escritores, a maioria desconhecida de seu povo. A professora, Cida Bilac Jorge. O poeta, José Eduardo Leite, que fez da poesia “bailarina de ritmos diversos”, viajante “no tempo e na memória”.

Nunca mais nos encontramos, o poema e eu. Seus versos, os repetia nos rasgos da memória, no desejo incontido que tinha de reunir, um dia, estes escritores em antologia jamais pensada para esparramar dentre diferentes gerações sementeira de encantamento e beleza, humanização necessária para “confirmar no homem traços essenciais como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

Tudo isso e mais, muito mais, encontrei na obra deste poeta nosso. Com ele, fui capaz de “penetrar nas coisas desejando buscar a poesia. Perdi-me no rumo indefinido”. Parece difícil? Impossível mesmo? Até o instante em que pude encontrar no exercício poético “translúcida em seu gesto/ a forma pura”. Por quê? Porque poesia é vida. Como sei? Porque ensinou-me Oswald de Andrade ter aprendido com “seu filho de dez anos que a poesia é o descobrimento das coisas que nunca vira antes”.

Agora, bisnetos, netos e filhos de Eduardo Leite – ah, os seus filhos, que se deixaram e ainda se deixam embalar pelos poemas do pai – ofereceram-lhe edição especial com alguns de seus poemas, anunciando estar “a vida em ti, flor abstrata”! – sua apresentação da poesia, decifrando assim o sentido da vida.

Dia destes, soube de professor que anda conquistando alunos para suas aulas porque faz, em parte delas, um sarau poético. Conversei com dois de seus alunos e os descobri fazedores de versos. Bons versos. E me lembrei outra vez da professora e seus feitos em sala de aula. Estes mestres sabem, verdadeiramente, como fazer Escola com competência e habilidade.

Trato, então, de dizer que há poetas a serem apresentados a estes alunos como, um dia, apresentei aos meus tantos poetas. Destaco, sem hesitar, José Eduardo Leite. A obra editada pelos filhos permite descobrir facetas do poeta, mas não é conjunto de sua obra poética. Faz-se aí uma colcha de retalhos capaz de dar ao leitor ideia do quanto o escritor, até mesmo em carta a amigos, usa e abusa da palavra e da beleza dela, permitindo observar no poeta nonagenário, lucidez e vivacidade invejáveis.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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