Retalhos...

Por Marisa Bueloni | 13/07/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Dizem que não mostro a idade. Mas se mostrasse, que mal haveria? Temos a idade que temos, não importa se parece ou não. Enfim. Lá pelos 18, olhei para a frente e pensei: vou tirar de letra, vai ser canja. Não foi. Deus sabe os acidentes de percurso que enfrentei, as 11 intervenções cirúrgicas a que me submeti, sendo nove com anestesia geral.

Não saltei de paraquedas, não fiz mergulho, tirolesa, alpinismo, jumping, rapel, nada. Vivo no chão. Minha vidinha é térrea como minha casa. Amo a beira-mar. E amo a solidão do boi no campo. Quando é que a vida começa a se completar? Quando é que saímos da nossa casca ancestral

Pois ainda evito os passeios de escuna, de barcos, de lancha. Os outros vão, eu aceno de longe. Fico sempre em terra. Só visitei uma vez um navio, num passeio da excursão. Eu tinha 15 anos. Era um cargueiro de sal, no porto do Rio de Janeiro. A tripulação era grega, arrisquei um tímido inglês. Ficou por isso.

No galho mais alto da mangueira, eu governava o mundo. Ninguém elaborava leis mais belas e mais justas dos que as minhas. Comendo manga verde com sal, eu tinha um reino lá embaixo e meus vassalos eram as pombas do viveiro do meu irmão, os besourinhos e as borboletas. Parece que, antigamente, havia mais borboletas do que agora. Era fácil e simples reinar do alto da mangueira. As verdades eram absolutas, Deus fizera o mundo perfeito. Se ameaçava chuva, dava tempo de descer correndo da árvore.  Só que a vida lá no chão era em branco e preto.

Na fábula de La Fontaine, eu seria a formiga, disparado. Embora saiba cantar direitinho, acharia um desperdício passar o verão só cantando. Ora, tenho mais o que fazer. Mas seria a formiga, armazenando alimento na casinha. Deixa as cigarras cantarem. Enquanto trabalhamos, há música no ar. Esse zizizizi sonoro tem sua função na ordem do universo. Um brinde para nós, formigas ciosas. Então, até no jogo de buraco é bom saber o momento certo de pegar a mesa. Quem guarda tem. Aí, é só colocar todas as cartas, pegar o morto, fazer duas canastras limpas e bater. Como se dizia antigamente: fim de papo. Perdão, La Fontaine.

Não há nada de novo debaixo do sol. A não ser uma febre adquirida na contínua infecção da vida. A não ser um corpo menos ágil e um olhar mais frágil. A não ser um canto menor e um dó maior. A não ser um acaso que não vem ao caso. A não ser uma divisória no quarto da memória. A não ser uma particularidade a esta altura da idade. Fim de poema?
  
Queria ser inteligente, daquela inteligência matemática, de saber quanto é 22 X 29 sem pegar na calculadora. Acho lindo quem sabe fazer conta de cabeça. Eu perguntava ao meu marido: quanto é 219.758 menos 16.389? E ele respondia sem piscar. Queria ter esta inteligência das pessoas que dizem: eu fiz toda a parte elétrica da minha casa. Ou: eu instalei e montei tudo isso, só com a ajuda do manual..

Era uma vez um menino que brincava de guerra. E do seu tanque disparou uma flor. Nada de tiros. Somente flores. Ainda que insignificantes, as buganvílias são torpedos explosivos, coloridos, que se desfazem ao sabor do vento e enfeitam calçadas soluçantes. Quem for capaz de ouvir o gemido de uma calçada que soluça, toda vez que recebe a flor insignificante em seu colo, compreendeu o sentido da vida.

E vamos em frente, na quarentena da vida!… Alguém pode nos dizer até quando?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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