Escrever é sonhar

Por Marisa Bueloni | 22/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Perguntaram-me se não pretendo comentar a crise mundial, a pandemia, a loucura destes tempos de caos, o presidente americano, o presidente brasileiro e sua equipe ministerial e toda a trama que começa a tomar conta do nosso cotidiano.

Confesso não sentir muita vontade de abordar o momento político, a incerteza destes tempos sombrios, a corrupção na compra dos respiradores e na construção dos hospitais de campanha, o triste e alto contingente dos que já partiram, as injustiças e as funestas perspectivas mundiais.

Enfim, estou numa fase de sonho. Creio que escrever é sonhar e libertar o sonho, as lembranças. Nas minhas recordações, estou acima do mundo e de mim mesma. Ali, encarapitada no alto de um muro, comendo um maravilhoso pão sovado com manteiga, eu era a menina mais feliz da terra, observando os pombos se aninhar junto à mangueira do nosso quintal.

Anoitecia, e cada estrela que se acendia era um incêndio de felicidade para a minha alma. Havia música no céu, na terra, num mar distante que eu ainda não conhecia, mas que me chamava, me chamava, eu podia ouvi-lo dia e noite sem cessar. O chamado vinha do mapa do Estado de São Paulo que a professora usava em sala de aula. Ela pegava o ponteiro de madeira, apontava-o para o Oceano Atlântico, eu me via naquelas águas e meu coração ficava aos pulos.

Nos meus sonhos, eu me sentava sobre as ondas e me deixava levar, não de volta à praia, mas pelo mar adentro, num ir embora sem fim, no alto mar da vida que me chamava para algum lugar. O mar era feito de dor, de uma lonjura misteriosa, inatingível e bela, pendurado na parede da sala de aula.

Nem tudo é dor, a vida tem suas doçuras. As minhas era passar as férias escolares em São Paulo, na casa da madrinha adorada. O que era São Paulo para uma criança de 9 ou 10 anos de idade, entre os anos 50 e 60? Puro mistério. Sair de Piracicaba e ir para a capital, numa viagem de trem – glória das glórias. Só quem fez uma viagem destas na infância, para visitar a madrinha, pode entender o encantamento. Ó, quando passávamos pelas fazendas e sítios e víamos as mulheres estendendo roupas no varal, ordenhando as vacas e acenando para o trem. O panorama que eu via não era apenas real e concreto, mas um quadro gravado nas retinas, para sempre.

Estou numa fase encantada. E também porque estou nocauteada de esperança. Um comboio iluminado apita na campina em que brincamos um dia. Houve um dia em que tivemos 18 anos. Deixem-me ficar quietinha aqui, por favor. Neste isolamento forçado, quero sonhar. Quero entender o que está acontecendo, e dar uma marcha à ré no tempo, para ver como é que seria, santo Deus!…

Estou numa fase que costuma acometer a maioria das pessoas, numa certa altura da vida, quando se olha para trás e se avalia a caminhada, as lutas, os sofrimentos, as perdas. E os ganhos.

Ainda estou naquele trem. Ainda estou naquela onda que me levou para o alto mar da vida. Ainda vou crescer. Quero ficar em silêncio, imóvel, extasiada com tanta beleza. Ela existe. Apesar de tudo, apensar do vírus que nos ronda, implacável. Apesar do medo. Ainda estou naquele trem que parte a toda hora e naquele mar que me abraça com tanto amor!

Não preciso comer nada, nem beber, nem me agasalhar. Nem ler os livrinhos que o moço do trem vem oferecer aos passageiros. Não posso tirar os olhos da paisagem. Poderá surgir, de repente, uma cena imortal e não quero perdê-la. Estou naquele trem – o trem da vida -, mas já é muito tarde. O sonho me alimenta e o Anjo do meu lado segura a minha mão.

Escrever é sonhar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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