Por linhas tortas

Por Marisa Bueloni | 27/05/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Nas noites vastas, vai a caneta compondo o seu canto nas páginas do caderno cúmplice.  Todo poeta cultiva, secretamente, um caderno assim. É incontável a poesia ali depositada, à maneira dos poetas crônicos. Mesmo na era do computador, poeta que se preze tem um caderno escondido a sete chaves. Ou debaixo do travesseiro. E ai de quem pegar o dito sem permissão do autor.

O poeta precisa ter algo à mão, de fácil acesso, quando, na madrugada, sente que o estro bate à cabeceira da cama. Nossa! Que baita susto acordar com o vozeirão dele, a gente se revirando na cama, tentando conciliar o sono. Mas, depois do estrondo do vate das noites, o jeito é pegar o caderno. E tome poesia. Se vai prestar, não se sabe. Só de manhã, quando o dia raiar.

Já escrevi até dentro da igreja. Foi numa tarde, dessas em que o coração se sente pequenino, fraco, necessitando de refúgio e amparo. Bateu-me a nítida sensação de que o ato de viver é pura impossibilidade. Fui buscar aconchego nos braços misericordiosos do Pai. E encontrei.

Havia bloco e caneta na minha bolsa. Comecei a escrever com o bloco apoiado no colo, sentada no último banco da igreja. Silêncio completo, a penumbra, e o olhar santo das imagens. São Francisco, lá na frente, tão humilde, mal podia olhar para ele. Depositei, naquele momento, minha oferta literária. E rezei: “Aceita, Senhor, a minha oferta”.

Eram versos sofridos, poesia cortante, linhas sem rima e sem métrica, sem estilo nem forma, sem doçura e sem mensagem, de uma tristeza profunda. Sabe Deus o que seriam e se receberia a minha pobre oferta. Mas, Ele estava lá e não ousei desafiá-lo em minha perplexidade.

Em momento algum tentei ser autora de alguma coisa. Eu estava diante do Autor. Esperei, sentada no fundo da igreja, que um Anjo do Senhor viesse buscar o meu poema e o entregasse, pessoalmente, ao Pai. Um mediador celeste, com as asas levíssimas, viria me salvar e, quem sabe, lá
nos jardins do Céu, o Pai aguardasse meu poema… Sim, o Anjo viria.

Eu esperei. Eu esperei por mais de uma hora. O Anjo não apareceu. Tampouco desejei que isto acabasse por acontecer. Mas guardava, no fundo da minha alma, a íntima certeza de que Deus lera com atenção as linhas sem nexo de um poema esdrúxulo. Não pedi que entendesse mais nada ou as razões que nos levam a buscá-Lo, quando o espírito fraqueja na pequenez humana.

Como o Anjo não viesse mesmo, guardei o bloco na bolsa e dirigi-me à porta de saída. Encontrei a garrafa de água benta e não resisti. Toda a bênção do mundo estava ali. “Aceita, Senhor, a minha oferta”. Lá fora, a luminosidade da tarde. Um ar fresco secou cada resto do que fosse pranto em minha face.

Descendo as escadarias da igreja, pensei nas coisas que se renovam
todos os dias, como renovado estava o meu espírito, apesar de tudo. Pensei na mudança das estações, nas folhas que amarelam e caem, na fl oração e nos frutos. Assim é nossa vida, floração que pulsa biologicamente neste poema respiratório que é o ato de viver.

Chegando em casa, quis revisar o texto escrito na igreja. Oh, céus! Sintaxe, não havia. Tudo era um grande e mero anacoluto. Pois fi z as correções devidas. Se não me acerto com elas, não me acerto com Deus. É uma lei pessoal.

Ele, sim, escreve certo por linhas tortas!…

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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