Caía a tarde feito um viaduto

Por Rubinho Vitti | 12/05/2020 | Tempo de leitura: 2 min

“Caía a tarde feito um viaduto. E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos…”. Estamos por aí, vendos os dias desaparecerem lentamente nos skylines das janelas, embriagados por tanta informação ruim, de luto pelos que estão indo e com medo de que os nossos possam ir também. Uma versão de Carlitos às avessas.

Enquanto sofremos, ansiamo-nos, pensando no futuro sem poder fazer planos, vendo donos do poder soltando impropérios pelos cotovelos e ficando de mãos atadas. E o que tem salvado muitos de nós deste imbróglio mundial é a arte. Seja ela qual for.

A música, principalmente, nos leva a lugares distantes sem sairmos de casa. É como viajar pelas letras de canções ou sentir que aquilo foi escrito especialmente para você. A alma é traduzida de uma forma que só letra e poesia conseguem.

Mas como um compositor consegue, com tanta clareza, tocar lá no fundo de nós? No fundo todo mundo é meio igual e assim existe uma grande sintonia entre quem compõe e quem ouve. As histórias são as mesmas, se repetem, e isso é o mais lindo da arte, que imita a vida, que imita a arte…

Nesta semana, foi-se Aldir Blanc. Na minha ignorância, não sabia que ele era o autor de tantas canções incríveis que eu sempre amei na voz de alguns dos meus intérpretes favoritos. Ele morreu, aos 73 anos, vítima do coronavírus. Como diz a matéria da Folha, um homem caseiro, que viveu sua vida em quarentena, precisou sair por causa de um vírus e não voltou mais.

Blanc era desses letristas que conseguem invadir a nossa existência em suas canções. Qual não é o tamanho da emoção que se sente ao ouvir Elis Regina cantando O Bêbado e o Equilibrista? Ela, sua maior intérprete.

Mas e quem se lembra do compositor? Muita gente acha que a música, oras, é feita por quem canta. E o autor fica por lá, em sua zona de esquecimento, fora dos holofotes e dos aplausos. Blanc foi um desses para a maior parte da população. Tanto que morreu sem ter plano de saúde, recebendo a ajuda de uma vaquinha feita pelos colegas da classe artística para conseguir acessar melhores condições hospitalares.

É o nó profundo e difícil de desatar dos direitos autorais no Brasil. Como o compositor, ou seja, o criador daquela peça que vai parar nas paradas de sucesso, no topo das mais ouvidas, entre os clássicos dos clássicos da Música Popular Brasileira, não consegue ver sua obra se tornar seu sustento? A música que chega para nós como uma salvação acaba não salvando quem mesmo a compôs.

A biografia de Aldir Blanc é muito parecida com a de muitos compositores, autores de melodias que você pode estar assobiando agora, por exemplo, mas nem sabe. Não temos a cultura de valorizar os arquitetos da canção, mas nos esbaldamos com suas obras.

Ficamos por aqui, com a esperança equilibrista, sabendo que, aconteça o que acontecer, o show de todo artista tem que continuar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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